O mundo flutuante que nos obrigará a ser o melhor de nós

Reagimos da pior forma perante o mérito do ‘outro’. Perante o sucesso dos melhores de nós, a riqueza dos judeus, os êxitos de ingleses, alemães e americanos – e agora à reemergência da China, ‘natural’ pelo seu passado milenar, pela dimensão populacional e pela resiliência induzida pelas determinações da geografia e as vicissitudes da História. 

Também os médicos e a ajuda russa e cubana chegaram a Itália. Para depois… obterem facilidades comerciais e apoio político, como irá dizer-se por aí.

Tal como se diz dos chineses, que, depois de terem sobrevivido no foco terrível, se foram meter num horror igual ou pior – para a China poder fazer os investimentos… que já fez nesses países e que todos querem que continue a fazer!

Preconceito, ressentimento, e não inveja – como escreveu um filósofo menor. Este é um sentimento universal, que noutras culturas funciona como fonte dinamizadora, mas na nossa se transforma em pulsão para nivelar por baixo, anular ou afastar os que sentimos melhores do que nós.

Gerou-se assim uma cultura da aparência, com que iludimos os outros iludindo-nos a nós próprios. Confundimos a realidade com aquilo que queríamos que ela fosse – e daí a dificuldade em intervirmos nela e a superarmos. E assim temos permanecido, contra as qualidades admiráveis que nos caracterizam coletivamente, que noutros contextos culturais e sociais tornam tão apreciados aqueles de nós que se espalham pelo mundo.

Esse mecanismo identitário perverso continua a impedir que nos realizemos coletivamente, bloqueando o arranque do progresso, sempre adiado.

Reagimos da pior forma perante o mérito do ‘outro’. Perante o sucesso dos melhores de nós, a riqueza dos judeus, os êxitos de ingleses, alemães e americanos – e agora à reemergência da China, ‘natural’ pelo seu passado milenar, pela dimensão populacional e pela resiliência induzida pelas determinações da geografia e as vicissitudes da História. Reemergência bem-vinda, aliás, pela afirmação internacional equilibradora, conseguida, como no passado, sem bombas, invasões ou porta-aviões a policiar os mares do mundo. Ao contrário do que se verificou e verifica com as outras hegemonias.

Esse traço endémico ancestral tem impedido que sejamos o que fomos fugazmente no passado e poderíamos continuar a ser hoje, se deixássemos florescer as nossas virtudes e assim pudéssemos potenciar os nossos recursos.

Trata-se, afinal, duma fuga persistente à emulação, que foi cultivada na escola e na universidade – onde deveria acontecer o contrário: aprendermos a corrigir e superar o pior de nós e exercitar o melhor.

O melhor nas relações interpessoais e interculturais é o olhar crítico que voltamos para nós próprios depois de iluminado pela visão objetiva, verdadeira, do ‘outro’. Mas na nossa sociedade fazemos dominante e endemicamente o contrário. E assim nunca vemos o ‘outro’ – vemos uma imagem que é o negativo da imagem mentirosa que idealizamos de nós.

Como disse David Landes em A Riqueza e a Pobreza das Nações (Gradiva), citando com exemplar conhecimento o nosso grande Vieira: a ferida imposta a quem nos poderá ajudar atinge sobretudo quem a desfere.

Um exemplo? Não estamos hoje ainda a pagar o custo da perseguição dos judeus? Expulsos para outros países para onde levaram o que nos dariam a nós, como ouvi um dia José Mariano Gago ter a coragem de afirmar. Expulsos ou queimados no Terreiro do Paço, com o cheiro e o fumo a chegarem ao meu Campo de Ourique.

«Sou um voluntário do mundo», disse-me Paulo Lopes, o responsável pelo armazém da Gradiva. Escrevo o seu nome, para não se perder sem registo na poeira de tantas palavras inúteis. Gente simples, autêntica, solidária, do meu país tão amado.