Assaltos e licitações agressivas na corrida aos bens médicos

Os EUA compram tudo, mesmo acima dos preços de mercado e tirado das mãos de aliados. Já países pequenos vêm bens médicos roubados no caminho ou parados em alfândegas.

A corrida ao equipamento médico para combate à covid-19 transformou-se num faroeste, onde as alianças significam muito pouco – os Estados Unidos não hesitaram em confiscar material destinado ao Canadá e à Alemanha, a França de tentar ficar com bens comprados por Espanha – e os roubos multiplicam-se, até à mão armada.

A única certeza é que o preço de máscaras cirúrgicas, equipamento de proteção e kits de teste disparou. Mas mesmo que se consiga licitar mais alto nos leilões internacionais, sejam eles legais ou no mercado negro, não é seguro que os carregamentos cheguem ao seu destino.

“É como tentar agarrar uma barra de sabão. Mandamos vir materiais, estão ao nosso alcance e depois escorregam das nossas mãos antes de chegar cá”, lamentou uma fonte governamental ao Times of Malta – foi saqueado um armazém turco onde estavam 50 mil fatos médicos destinados a Malta, avançou ontem o jornal. 

Também foi noticiado que um carregamento de máscaras vindo da Ucrânia chegou já aberto ao Hospital de Matter Dei, nos arredores de Valleta, mas, por sorte, não parecia faltar nada. Na Ucrânia, a braços com uma guerra civil desde 2014, ainda a semana passada as autoridades apreenderam ventiladores e 300 mil máscaras cirúrgicas, prestes a ser contrabandeadas.

Semanas antes, cinco homens foram detidos por roubar 100 mil máscaras que um açambarcador tinha no seu veículo. Usando uniformes da polícia e armas de fogo, “em vez de negociar as condições da compra, os criminosos atacaram, tiraram as máscaras e espancaram o homem”, explicou o chefe da polícia de Kiev, Andriy Kryshchenko, citado pela Reuters.

Até aqui ao lado, em Espanha, onde já há mais de 140 mil casos confirmados de covid-19 e mais de 13 mil mortes, foi recentemente detido um empresário acusado de roubar cinco milhões de euros em material médico, incluindo dois milhões de máscaras, de um armazém em Santiago de Compostela. Os criminosos pretendiam vender o saque a uma empresa portuguesa, segundo o Voz de Galicia

Não que o único impeditivo à chegada de material médico seja a atividade criminosa. “Com os países a entrar em isolamento por toda a União Europeia, é praticamente impossível receber materiais”, contou a fonte do Times of Malta.

“Digamos que compra mercadoria ao Reino Unido. Chega a França, mas depois fica preso em Itália e nunca mais sai dali”, exemplificou. Ainda esta semana o Governo francês foi forçado a devolver quatro milhões de máscaras destinadas a Espanha, compradas a uma empresa sueca que opera em solo francês, avançou o L’Express – em resposta, a empresa já se deslocalizou para a Bélgica.

Enquanto isso, o Governo da ilha de Malta, desesperado e isolado no meio do Mediterrâneo, passou a negociar diretamente com o Governo chinês. O objetivo é evitar a especulação dos preços dos materiais médicos e assegurar a sua chegada. 

 

“Guerra das máscaras” Apesar dos atritos entre países europeus, na “guerra das máscaras”, como lhe chama a imprensa internacional, o inimigo são os EUA, que caminham a passos largos para ser o novo epicentro da pandemia. A Administração de Donald Trump foi criticada pela despreparação – algo ilustrado pela escassez de materiais médicos registada por todo o país – e reagiu agarrando o que podia no resto do mundo.

“Houve um país estrangeiro que pagou três vezes o preço da carga no tapete de aterragem. Por isso, as máscaras foram-se”, contou a semana passada Renaud Muselier, líder regional da Provença-Alpes-Costa Azul, em França, explicando o desaparecimento de equipamento encomendado da China, acrescentando à BFM-TV que os responsáveis eram norte-americanos.

A Alemanha e o Canadá também têm queixas contra o seu aliado. “Mesmo em tempos de crise global, não deviam usar táticas do faroeste”, criticou Andreas Geisel, ministro do Interior de Berlim, após 200 mil máscaras destinadas à polícia alemã serem desviadas no aeroporto de Banguecoque. A mesma expressão foi usada pela vice-primeira-ministra canadiana, Chrystia Freeland, na segunda-feira, após Washington proibir uma empresa norte-americana de entregar três milhões de máscaras ao Canadá – também foi cancelada a exportação de equipamento médico para países da América Latina, como o Brasil.

“Metemos as nossas mãos em cada bocado disso que consigamos”, declarou à Reuters um funcionário do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos. Recebeu ordens para comprar tudo, mesmo que seja acima do preço de mercado, até terem “muito mais do que o necessário”. 

Nem as doações para os países mais vulneráveis passam pela alfândega dos EUA: foram confiscados 20 ventiladores oferecidos aos Barbados pela cantora Rihanna. A ilha caribenha, que na segunda-feira só tinha 48 ventiladores para mais de 277 mil habitantes, “está a lutar contra 203 países e territórios por todo o mundo para conseguir tanto deste equipamento quanto possível”, assegurou o seu ministro da Saúde, Jeffrey Bostic.

A corrida ao material médico deverá aquecer ainda mais, agora que o Centro de Prevenção e Controlo de Doenças dos EUA passou a recomendar que os cidadãos utilizem máscaras de pano em locais públicos. A recomendação de máscaras cirúrgicas, feitas com tecidos próprios, continua reservada a profissionais de saúde, mas não há dúvidas que muitos cidadãos que consigam comprar estas máscaras as preferirão – nem que venham do crescente mercado negro.

 

“Parem o fogo onde está” No que toca ao equipamento médico, talvez o maior problema dos governadores norte-americanos seja a competição. Desde o início da pandemia que os estados têm disputado estes bens – levando a um pico no seu custo – em vez destes serem entregues pelo governo federal, mediante a necessidade. Recentemente, Trump apostou num sistema híbrido, em que parte é adquirida pelo Governo e outra pelas autoridades estaduais.

“Ou estão dentro ou fora”, criticou Jared Polis, governador do Colorado, à CNN, após o seu estado adquirir 500 ventiladores que foram “varridos” pelo Governo. “Ou os compram e providenciam aos estados, e dizem-nos o que vamos receber e quando, ou ficam de fora”, considerou o governador. No meio do caos, empresas aproveitaram para acumular e revender material médico aos mais desesperados – o FBI está a investigar. 

“Isto foi descrito, e creio que apropriadamente, como o faroeste selvagem”, afirmou Gavin Newson, governador da Califórnia. O seu estado, com 40 milhões de habitantes, juntou-se a estados mais pequenos para os apoiar nas licitações. “Estamos a tentar organizar-nos de uma maneira mais deliberada”, explicou. 

Na costa oposta, foi Nova Iorque, epicentro do surto nos EUA, a ser apoiado pelo pequeno Oregon. “Vai fazer uma diferença significativa para nós”, agradeceu o governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, após receber uma oferta de 140 ventiladores: o Oregon tem pouco mais de mil casos registados de coronavírus e 29 mortos, enquanto Nova Iorque tem mais de 138 mil casos e cinco mil mortes.

Para Cuomo, uma decisão do Oregon foi generosa e inteligente. “Eles vêm o fogo a alastrar”, notou o governador de Nova Iorque, para quem a lógica do estado mais pequeno é simples: “Parem o fogo onde está, antes que chegue a minha casa”.