Biblioteca pessoal: O aroma das planícies cobertas de erva

Esta semana gostaria de convidar o leitor, provavelmente farto de estar fechado em casa, para uma caminhada ao ar livre na companhia de um dos grandes espíritos do século XIX. 

Esta semana gostaria de convidar o leitor, provavelmente farto de estar fechado em casa, para uma caminhada ao ar livre na companhia de um dos grandes espíritos do século XIX. Descendente de huguenotes franceses fugidos para o Novo Mundo, Henry David Thoreau (1817-1862) foi um grande apologista do contacto com a natureza. Depois de se formar em literatura e línguas clássicas, aos 27 anos foi viver sozinho para a margem de um lago, tendo para isso construído e mobilado com as suas próprias mãos uma cabana. Ali viveu durante dois anos, só com o essencial, e completamente autossuficiente. Deixou-nos uma descrição da experiência em Walden ou A Vida nos Bosques.

Naquele tempo, a América do Norte era ainda um continente selvagem, que estava a ser conquistado, à custa de muito sangue, aos povos indígenas. Mas na sua Massachusets natal eram bem visíveis os sinais da civilização, que no entendimento de Thoreau envenenava as mentes e atrofiava o físico.

Thoreau apreciava dar longas caminhadas – mais do que apreciar, precisava delas. «Creio que não posso conservar a saúde e o vigor sem passar pelo menos quatro horas por dia – geralmente até mais tempo – a vaguear por bosques, montes e vales, absolutamente alheado de toda as preocupações terrenas», diz-nos em Caminhada, uma palestra «constantemente revista e aperfeiçoada […] ao longo da década de 1850», como nos explica a nota prévia à edição portuguesa da Antígona.

A sua desconfiança em relação à ‘vida civilizada’ está bem patente nesta passagem: «O caçador africano Cumming conta-nos que o pêlo do antílope africano, tal como o da maioria dos antílopes recém-mortos, liberta um delicioso aroma a árvores e a erva. […] Não me levem a mal por dizer que o odor a almíscar libertado pelo casaco do caçador é uma fragrância mais doce para mim do que a que exalam normalmente as vestes do comerciante ou do erudito. Quando abro os seus roupeiros e pego nas suas vestes, estas não me lembram o cheiro das planícies cobertas de erva nem dos prados floridos por onde andaram, somente o cheiro dos poeirentos negócios por onde andaram e das bibliotecas».

A que cheirariam as bibliotecas daquele tempo? Provavelmente à madeira das estantes, talvez encerada com cera de abelha; ao couro das encadernações; a papel, com mais ou menos pó à mistura; e não sei se a algum combustível usado para iluminar os interiores – velas de sebo, óleo de baleia? Seja como for, não me parece uma mistura especialmente desagradável.

A verdade é que, mesmo admirando Thoreau, o vigor do seu pensamento e a sua coragem, não temos de reverenciar cada uma das suas palavras como se fosse sagrada. 

Teria ele noção do privilégio absoluto que era poder dar caminhadas diárias de quatro horas? «Quando por vezes me ocorre que há artesãos e caixeiros que passam manhãs inteiras e até tardes a fio nos seus postos, muitos deles de perna cruzada – como se tivessem apenas pernas para se sentarem, e não para se firmarem nelas ou caminharem – parece-me que algum reconhecimento eles merecem por não se terem já suicidado», continuava em tom provocatório. Hoje, em que milhões de empregados de escritório por esse mundo fora passam dias inteiros em frente ao computador (e eu sou um deles), a sua mensagem é mais valiosa do que nunca. Talvez seguir o seu exemplo à letra fosse uma tolice. Mas ignorá-lo por completo seria um erro ainda maior que não nos podemos dar ao luxo de cometer.

 

O lado negro da mente { Kerry Daynes } 

«Quando é descoberta uma cena de crime, as equipas forenses vão analisar o local camada a camada, como a pele de uma cebola. Em cada camada, as provas são documentadas e meticulosamente etiquetadas, levando os investigadores e outros profissionais envolvidos no processo ao cerne da questão». Neste livro, a psicóloga forense Kerry Daynes leva-nos a locais pouco recomendáveis como hospitais psiquiátricos, prisões, cenários de homicídios e até às paisagens desoladoras que compõem o mundo interior dos criminosos. A autora relata também alguns encontros com violadores ou psicopatas, como a vez em que estava a almoçar e um notório sádico, Maurice, tirou o olho de vidro e o colocou na sua sopa. ‘O que têm de errado estas pessoas?’, perguntam-lhe muitas vezes. No entender de Daynes, é imperioso reformular essa questão. «Podemos começar por: o que lhes aconteceu? E o que nos aconteceu a nós, como sociedade?». 
A editora Bertrand preço 16,60€

 

Sem nunca chegar ao cimo { Paolo Cognetti } 

Documentarista e escritor apaixonado pelas montanhas, Paolo Cognetti relata aqui uma viagem aos Himalaias que realizou em finais de 2017. «Em todas as culturas, uma peregrinação é um caminho de purificação […]. Jerusalém, Roma, Meca: sem um destino, quando é que se atinge a pureza? Encontrava uma relação entre esta necessidade de cidades santas no final do caminho e a obsessão alpinista pelos cimos das montanhas: desde criança que ouvia falar nos cimos como metáforas do paraíso, e da palavra ascensão no sentido espiritual. Recordei-me que, ao invés, a mais importante peregrinação tibetana consiste em cumprir uma volta em torno do monte Kailash, que é sagrado para aquela cultura. Kora em tibetano, circumambulazione em italiano: os cristãos estacam cruzes no cimo das montanhas, os budistas traçam círculos aos seus pés. Achava o primeiro gesto violento, gentil o segundo; um desejo de conquista, em oposição a um desejo de compreensão».
A editora D. Quixote preço 14,40€