Isto não é uma crítica literária

Às vezes penso que continuo a ler para me manter em contacto com o mundo anterior, o que conheço. Outras vez, acho que leio para que me seja útil mais tarde.

Tome-se a experiência de ler um livro. Abre-se o livro e ele transporta-nos para outro lugar. Pode ser um lugar físico, que conhecemos ou não. Pode ser um lugar interior – um ambiente psicológico, um problema concreto de uma personagem, uma felicidade que acontece a alguém que nem existe. Pode ser um pensamento que nos afasta do nosso ou que nos aproxima de quem somos. 
Nestas noites – estas, e não outras, do início da primavera de 2020 – ando a ler Outline, de Rachel Cusk (editado em português, com o título A Contraluz, pela Quetzal). Em Outline faz calor. Um calor de sul da Europa. Um calor com barulho da gente que não recolhe a casa cedo. Que deixa as personagens com a enganosa sensação de que têm mais tempo. É um livro que pode ser resumido assim: pessoas falam, uma escritora ouve. Talvez todos os livros possam ser resumidos assim. 
Mas, e agora, o que ouvem os escritores? Como ouvir as pessoas que não passam, que não dão os braços e as mãos na rua, que não trazem crianças com os seus gritos para o sol, que não fazem barulho no calor de início de primavera? 
Pegue-se, então, num livro para ouvir o que os escritores dizem que ouvem. Repare-se não só no que dizem mas como dizem. Procure-se a ligação íntima entre as duas coisas. Não sabemos se nos detemos em certas frases pelo que têm de certeiro ou pela aparente inevitabilidade do seu som. Sublinhe-se frases. 
«Quando a paz se transforma em guerra, quando o amor se torna ódio, algo nasce no mundo, uma força de pura mortalidade». O acto de demorar-me numa frase, à noite, quando leio, é o exacto oposto do que faço durante o dia, a ler notícias, uma atrás da outra, sem conseguir fixar um rosto, um nome, um pormenor. Durante o dia, reinam os números. E os números – de casos confirmados, de casos suspeitos, de casos críticos, de mortos – fazem questionar todas as palavras. Que interessa, então, ler sobre uma mulher – que se confunde com a autora Rachel Cusk – a chegar a Atenas para dar um curso de escrita? Que interessa as histórias que lhe contam de divórcios, desgostos de amor, ambições frustradas, o crescimento normal acontecendo muito depois da idade adulta? 
Mas à noite, quando pego no livro, a narradora está sozinha e é uma observadora. Consegue distinguir na aparente confusão da vida um desenho, uma direcção, um jeito em cada pessoa para cair ou para se elevar. É isso que fazem os escritores, os artistas. 
Quando fecho o livro, antes de apagar à luz, volto ao meu lugar, ou melhor, ao meu tempo. Este tempo. Demoro um pouco a regressar, e o meu coração sobressalta-se como se tivesse acabado de saber que há uma pandemia, que estamos em estado de emergência, e que tenho sorte por estar em casa com a minha família. 
‘Outline’ quer dizer contorno. Mas como contornar o que não se vê? O que nunca se viu? Vai demorar muito até que se possam começar a delinear as histórias deste tempo. 
Tome-se, portanto, a experiência de ler um livro de outro tempo. E repita-se. Por hábito. Por crença. Por lealdade. 
Às vezes penso que continuo a ler para me manter em contacto com o mundo anterior, o que conheço. Outras vezes, acho que leio para que me seja útil mais tarde. Dizem que é assim com os sonhos: existem para processarmos o que já vivemos e prepararmo-nos para o dia seguinte.