As ‘falsas partidas’…

Em 8 de março, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchéz, ainda mobilizava o Governo para a marcha feminista em Madrid.

O mundo ficou achatado Quando ensaiamos uma ronda pelos principais media internacionais, o retrato, a terapêutica e as conclusões assemelham-se – só os números diferem. De resto, a informação é perigosamente monotemática.

O coronavírus tomou conta das primeiras páginas dos jornais e monopolizou telejornais, podcasts, rádios, redes sociais. As ruas e as estradas quase desertas contrastam com a ‘casa cheia’ de cada um de nós, cativos de uma angústia partilhada.

A pandemia insinuou-se, de mansinho, a partir de Wuhan, com as dúvidas da OMS – incrivelmente reverente para com Pequim, quando deveria ter prevenido, a sério, o mundo, mal se conheceu o ADN do vírus.

Algo que não ocorreu, de início, ao seu secretário-geral, o etíope Tedros Adhanom, nem aos seus colaboradores próximos nesta agência especializada da ONU. Tão-pouco a António Guterres, que há poucos dias ainda proclamava que «o mundo vive um surto horrível de violência doméstica» devido ao confinamento. Mas nem uma palavra sobre o papel da China neste surto de covid-19 ou sobre o despertar tardio da OMS para o seu perigo letal.

Sem prevenção atempada, o vírus espalhou-se, descontrolado, a nível global, apanhando desarmados os governos, e, em poucos meses, transformou-se numa fonte de incertezas na saúde – e de certezas sombrias para as economias, flageladas pela pior crise de que há memória.

Este coronavírus convocou-nos, também, para uma experiência inédita de clausura, e para os riscos da utilização maciça de sistemas de vigilância sofisticados, desde a leitura à distância de dados biométricos à captação dos nossos movimentos, com o registo dos sítios que visitamos e das pessoas com quem estivemos.

É um ‘big brother’ liberto da ficção, que persegue, monitoriza e condiciona. Está em vigor na China e, amanhã, estará noutras paragens, a pretexto da nossa saúde, segurança ou bem-estar.

A tecnologia existe, está disponível, é uma questão de tempo e de oportunidade.

Em ditadura, a exceção é a regra. Em democracia, a exceção é a emergência, mas sobra a criatividade para inventar esquemas e silenciar o que não convém ao poder do dia.

Veja-se, por exemplo, o que aconteceu em Espanha, onde um secretário de Estado se dedicou, semanas a fio, a filtrar as perguntas dos jornalistas – e a incluir algumas da sua lavra – para deixar à vontade o presidente do Governo, o socialista Pedro Sanchéz, nas conferências de imprensa. Quando este subia ao púlpito para responder pela crise, já sabia de cor a lição…

Simples e eficaz. Equivalia a pôr a liberdade de imprensa de quarentena, adotando um modelo censório não assumido.

Valeu a indignação dos jornalistas espanhóis, que numa rara iniciativa assinaram um documento onde se denunciava «a fraude», enquanto alguns jornais influentes, como El Mundo, tomavam posição em editorial, acusando o Governo de «preferir usar a mordaça». A coligação de esquerdas recuou. Mas a mancha ficou a pairar.

Houve mais silêncios cúmplices. Foi o que aconteceu em relação ao comportamento da China, quando esta ‘decretou’ o bloqueio informativo ao que se passava em Wuhan antes de montar o cerco sanitário à cidade.

Essa omissão, apesar de conhecida a perigosidade e infecciosidade do vírus, serviu para contagiar o mundo desprevenido e dar fôlego à pandemia.

No início de março, ainda a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, recusava, a partir de Bruxelas, a adoção de «medidas radicais e gravosas», designadamente a introdução de controlos fronteiriços.

Tanto Ursula como as agências especializadas da União estavam ultrapassadas pela realidade do vírus, mas teimavam na falácia. Um fracasso e uma prova de absoluta incapacidade de antecipar o ‘tsunami’ que estava a caminho, no plano sanitário e económico.

Foi um atraso imperdoável na avaliação do risco de propagação da epidemia, agravado, depois, pela insensibilidade perante a tragédia humanitária da Itália, a primeira vítima dos egoísmos e da falta de solidariedade europeia.

Ursula fez o seu mea culpa mais tarde, em carta aberta publicada no jornal italiano La Repubblica, e reconheceu o óbvio: que «nos primeiros dias da crise, perante a necessidade de uma resposta europeia comum, muitos pensaram apenas nos próprios problemas domésticos».

Tentou ‘emendar a mão’, como noutro artigo publicado no Observador, no qual lamenta «a falsa partida» que «continua a assombrar-nos». Bem pode ‘bater com mão no peito’, enquanto não se inventariam os custos das ‘falsas partidas’ em vidas humanas e economias paradas.

O que espanta é que, perante a falência sanitária em Itália, outros líderes – além de Ursula – se tenham alheado da magnitude do problema, como Pedro Sanchéz, aqui ao lado, que a 8 de março ainda mobilizava o Governo para a marcha feminista em Madrid. Uma irresponsabilidade.

Por cá, António Costa partiu tarde para a contenção, mas logrou recuperar algum do tempo perdido, contando com o apoio presidencial para as medidas mais restritivas.

Quando a tempestade amainar, haverá sempre um cínico (ou um especialista em gestão de crises) a lembrar que, em 2019, morreram na estrada em Portugal 472 pessoas e 2 288 ficaram gravemente feridas. E quase não se deu por isso…