Um problema chamado Holanda

A ordem internacional do pós II Guerra Mundial assentou, do lado ocidental, na afirmação definitiva do modelo da democracia liberal. Nas relações entre estes Estados, o paradigma realista clássico tradicional, cujo pressuposto era o conflito, foi progressivamente substituído pelo neorrealismo, ou estruturalismo, que aceitava a cooperação nas suas relações. Esta mudança paradigmática decorreu da perceção…

A ordem internacional do pós II Guerra Mundial assentou, do lado ocidental, na afirmação definitiva do modelo da democracia liberal. Nas relações entre estes Estados, o paradigma realista clássico tradicional, cujo pressuposto era o conflito, foi progressivamente substituído pelo neorrealismo, ou estruturalismo, que aceitava a cooperação nas suas relações.

Esta mudança paradigmática decorreu da perceção pelas elites ocidentais de que o interesse nacional era assim melhor maximizado, aceitando até envolver alguma perda de soberania. De certo modo, tal contexto resultou da fraqueza das potências europeias, e consequentemente do fim do mundo euromundo e da existência de um inimigo comum, então a União Soviética.

Na Europa, aprofundou-se este caminho, desde o primeiro empurrão do Plano Marshall, com a evolução da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, depois a Comunidade Económica Europeia e finalmente a União Europeia. As instituições e o enquadramento foram criados com o pressuposto de que a cooperação entre os estados era mais produtiva do que o conflito e que era obrigatório não deixar ressurgir os velhos demónios que criaram o período negro de 31 anos que deixou a Europa em escombros, e terá custado mais de 100 milhões de vidas.

A memória ainda fresca que as lideranças europeias foram tendo das consequências deste passado beligerante, assim como a existência do inimigo comum, durante as quase cinco décadas da Guerra Fria, permitiu que o modelo europeu fosse sendo desenvolvido e que funcionasse de forma aceitável.

Só que, o contexto e os protagonistas mudaram: já passaram 30 anos desde o colapso da União Soviética; a Alemanha ressurgiu (uma vez mais) unificada e afirmando-se como a maior potência económica europeia; e a União Europeia estendeu-se para lá da antiga Cortina de Ferro.

Tudo o que temos assistido faz-me entender que os estados passaram a ver este projeto de uma forma mais utilitária e menos como a concretização de uma ideia comum. Estão a tornar-se mais realistas (no conceito clássico do termo), o que leva necessariamente a choques de posições sucessivos. A União Europeia significa coisas distintas para o sul, para o norte, para o leste e para os países nórdicos. São estas perceções distintas e a visão mais utilitária sobre o projeto que fazem ressurgir os nacionalismos, que levam a eventos como o Brexit e que conduzem a crises sucessivas ou à óbvia falta de capacidade em lidar com os obstáculos que têm surgido.

Chegamos, assim, ao problema chamado Holanda, que, verdadeiramente, é muito mais profundo do que um país. É o problema de a Europa saber se ainda prefere a cooperação ao conflito, se tem condições para avançar no caminho do racional ou se retrocede para o objetivismo individualista.

Perante a ameaça comum do novo coronavírus e a pandemia de covid-19, nenhum estado da União se dispôs a ajudar a Itália, houve momentos de disputa de matérias de proteção entre membros do mesmo projeto europeu, um grupo de países (entre os quais a Holanda) não resiste a tentar impor regras de austeridade para que haja investimento num período de exceção e, finalmente, a existência de veículos de dívida comum (que seria um passo para uma maior integração) é atirada para um futuro mais longínquo.

Quando António Costa colocou o ponto da discussão em saber se a Holanda quer fazer parte da União Europeia, o que estava realmente a perguntar é se este projeto ainda tem razão de existir, com esta geometria e com estes intervenientes.

Ainda acredito que sim, que este é um tempo claramente de cooperação internacional, porque não quero que se dê razão a Kissinger, que dizia recentemente que “se os líderes não forem capazes de cooperar, deitarão fogo ao mundo”.

por Francisco Rocha Gonçalves
Vice-presidente da Câmara Municipal de Oeiras