Direito em tempo de Epidemia

A epidemia presente constitui, para alguns Estados, um precioso instrumento para a subversão de princípios constitucionais…

Subitamente a nossa vida mudou e, sem qualquer aviso prévio, fomos confrontados com uma realidade nova que alterou radicalmente a nossa forma de estar. Às perplexidades de uma sociedade de risco juntou-se agora o medo do desconhecido provocado por uma epidemia à escala global.

Inexoravelmente vão existir mudanças radicais, não apenas no sistema mundial de produção e consumo, mas, também, nas relações sociais. A vida pública, e comunitária, irá sofrer profundas alterações e, entre estas, avultam as situadas no mundo do Direito. Neste, instituições jurídicas construídas ao longo dos tempos, fruto de uma reflexão serena, são agora objeto de mudanças drásticas, alterando por completo a sua fisionomia

À escala planetária somos convocados para novas questões e escolhas em áreas nucleares no domínio dos direitos fundamentais.  Na equação das mesmas deverá estar sempre presente a circunstância de que o Estado de Direito não entrou, também, em quarentena e que os direitos humanos são o aval de uma sociedade civilizada.

Sem embargo, o certo é que se abriu uma Caixa de Pandora com todos os riscos que a mesma comporta, surgindo numa dimensão global um leque vasto de temas que vão desde a necessidade de um direito de saúde e humanitário até à oportunidade de uma outra ordem jurídica mundial ou, como refere Ferrajoli, a necessidade de uma Constituição da Terra como ferramenta para a governança global.

Previsíveis, igualmente, as alterações das regras da globalização, afetando as estruturas financeiras e as regras de um direito internacional mercantil fragmentário ou a modificação das relações de trabalho, objeto de nova configuração, conjugando a alteração das condicionantes da deslocalização da produção de bens com a robotização.

Na efervescência dos dias que passam também se encontram presentes as nuvens sombrias que escurecem o horizonte, configurando ameaças fundamentais às sociedades democráticas. A epidemia presente constitui, para alguns Estados, um precioso instrumento para a subversão de princípios constitucionais, consagrando poderes autocráticos ou, noutros casos, para a introdução de sistemas de vigilância global, massiva e intrusiva, tornando uma figura menor o Grande Irmão de que falava Orwell. A possibilidade de generalização de tais sistemas e o olhar acolhedor com que são vistos por alguns dos líderes políticos mundiais será um dos desafios do futuro.

No nosso país, num ápice, o sistema de justiça enfrentou algumas mudanças, procurando adaptar-se às contingências.  Desde a relação jurídica contratual privada inscrita no direito ao arrendamento até ao direito do trabalho e das empresas, passando pelo direito penal ou o direito das falências, o legislador viu-se na necessidade de alterar, inovar ou até mesmo de rejeitar regras há muito presentes no universo jurídico.

Paralelamente, em poucos dias, o apelo às novas tecnologias ganhou alento e realidades como o tribunal virtual, ou o recurso à videoconferência, tornaram-se uma prática obrigatória, convocando a reanálise de princípios que constituíam dogmas intocáveis como o princípio da imediação ou o próprio princípio da legalidade.

Não obstante, temos por adquirido que o recurso à tecnologia, mera questão de infraestrutura, não tem a virtualidade para camuflar debilidades já existentes, mas que agora assumem outra evidência perante a necessidade de respostas rápidas e eficientes. Os paradigmas dessas fragilidades são patentes em tribunais que vão constituir uma primeira linha e onde se vai discutir, a curto prazo, a sobrevivência, recuperação ou revitalização de muitas empresas, além da defesa de direitos dos trabalhadores e credores. Não é possível uma resposta adequada quando a duração média dos processos em alguns tribunais de comércio é de cinco anos.

Igualmente é certo que, num momento em que a pressão fiscal se vai intensificar com o expectável aumento de recurso das decisões da Administração Fiscal para os Tribunais Administrativos e Fiscais estes têm uma pendência de 70.000 processos e atrasos de anos, quando não de décadas.

Colocado perante a pressão da possibilidade de explosão do vírus nas prisões o legislador respondeu com rapidez, procurando evitar tal perigo potencial. Porventura será este, também, o tempo de enfrentar as incongruências do sistema judiciário, procurando as respostas exigidas pelos novos tempos.

por Santos Cabral
Juiz Conselheiro