Em vez de cooperação para gerir a crise, líderes escolhem o confronto

Casa Branca monta estratégia de culpabilização da China e até o seu rival nas presidenciais caiu na armadilha.

Em vez de cooperação para gerir a crise, líderes escolhem o confronto

Num tempo em que muitos especialistas defendem que deve haver um nível de cooperação sem precedentes entre países, as tensões geopolíticas e as trocas de acusações entre as duas grandes potências mundiais e aliados estão a adensar-se, um novo presente que o coronavírus trouxe ao mundo.

Apesar de Donald Trump frequentemente sublinhar – enquanto atira acusações ao país – que tem boas relações com Xi Jinping, líder chinês, o tom dos comentários do Presidente dos Estados Unidos em relação à China tem-se tornado mais agressivo – incluindo a designação de “vírus chinês”, à qual Pequim respondeu dizendo que o vírus teve origem nas Forças Armadas dos EUA. Uma reviravolta no discurso, quando há semanas Trump até foi generoso nos elogios à forma como o líder chinês estava a gerir a crise sanitária.

Mas a verdade é que Pequim tem cada vez menos amigos nos corredores da Casa Branca, e até o provável rival de Trump nas eleições deste ano, Joe Biden, se juntou à estratégia de culpabilização da China lançada pelo Presidente.

No passado sábado, Trump declarou que Pequim deveria sofrer consequências se ficasse provado que a China fora “conscientemente responsável” pela pandemia do coronavírus, argumentando que o vírus podia ter sido contido na China e que agora “o mundo todo estava a sofrer por causa disso”. Mas, logo a seguir, deu uma espécie de passo atrás: “Se foi um erro, foi um erro. Mas se foram conscientemente responsáveis, sim, deve haver consequências”. No caso de Pequim ser de facto a responsável pela pandemia, Trump não explicitou que medidas estaria disposto a tomar contra o país – no entanto, suspendeu temporariamente os fundos que os EUA atribuem à Organização Mundial de Saúde, acusando-a de ser “sino-cêntrica”.

O passo atrás não apagou toda a construção da robusta retórica de incriminação da China pela pandemia que o Presidente dos EUA tem veiculado nos últimos dias. “As medidas que tratam Pequim como um inimigo arriscam desencadear os próprios resultados que é suposto prevenirem: discórdia diplomática, rutura económica, e mesmo [um] conflito militar”, defendeu Doug Bandow na revista Foreign Policy

Acerca da alternativa entre colaboração e confronto, Peter Beinart defendeu no The Nation que o último pode ter terríveis consequências. “A colaboração entre os EUA e a China contra as doenças infecciosas não é uma fantasia globalista. Provou-se imensamente efetiva no passado. E um dos seus grande campeões foi George W. Bush”, defendeu o professor da Universidade de Nova Iorque, referindo-se à epidemia SARS, que surgiu em 2002. 

A estratégia da Casa Branca – e dos seus aliados mediáticos, como a Fox News – aparenta ser deslocar as atenções para Pequim, enquanto Trump é criticado internamente pela sua própria gestão da crise de saúde pública que o país atravessa – os EUA são o epicentro mundial da pandemia, a um passo de ultrapassar as 800 mil infeções e a caminho das 50 mil mortes por covid-19, segundo a Universidade Johns Hopkins.

Trump tem aliados nas acusações de falta de transparência a Pequim. O primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, tem insistido numa investigação independente sobre o alastramento e as origens da pandemia do coronavírus, diz a estação australiana SBS News, mas a China rejeita veementemente essa perspetiva, considerando que a acusação de falta de transparência não tem fundamento.

No outro lado do globo, na Europa, Emmanuel Macron disse ao Financial Times que era “ingénuo” sugerir que a China tem gerido melhor a crise sanitária. O Presidente francês acrescentou ainda que “aconteceram” coisas das quais “não temos conhecimento”. E Angela Merkel, chanceler alemã, foi a última líder mundial a juntar-se a este bloco, insinuando que Pequim induziu o mundo em erro sobre o coronavírus.

Mais surpreendente foi a posição tomada por Joe Biden, que afinou pelo diapasão de Trump nos ataques à China, mas como ferramenta para criticar o Presidente. A campanha do vice de Barack Obama divulgou, segundo o The Nation, anúncios recheados de imagens ameaçadoras de soldados chineses, acusando Trump de se ter ajoelhado perante os chineses.

“Toda a gente sabia que a China mentiu sobre o vírus”, declara o narrador do anúncio, com uma imagem da bandeira chinesa a esvoaçar. “O Presidente Trump deu a sua confiança à China”, repete o narrador. Na última sexta-feira, o conselheiro de Biden disse aos repórteres que “o Presidente elogiou a China e o Presidente Xi mais de 15 vezes”.