Num mês morreram mais 1255 pessoas do que seria esperado

Escola Nacional de Saúde Pública admite que o número de mortes de covid-19 pode estar subestimado. Há mais de 600 mortes em excesso por explicar, a maioria idosos.

No período de quatro semanas entre 16 de março e 14 de abril morreram em Portugal mais 1255 pessoas do que seria esperado numa situação sem pandemia. A conclusão é de uma equipa de investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, que tem estado a analisar a evolução da mortalidade por todas as causas no país. Dado que até 14 de abril estavam confirmadas 599 mortes por covid-19 no país, a equipa admite que possam ter ocorrido mais mortes relacionadas com a infeção em que as pessoas morreram em casa ou em lares e não chegaram a fazer o teste. Outra hipótese avançada é que possa ter havido um adiamento da procura de cuidados ou dificuldades em ter resposta nos serviços de saúde.

O aumento do número de mortes desde o início da pandemia já tinha feito soar os alarmes e a Direção Geral da Saúde já tinha indicado ao i que a tendência está a ser investigada, não tendo ainda divulgado resultados. A análise da ENSP, que tem estado a acompanhar a evolução da epidemia em Portugal em várias vertentes, alerta que o aumento da mortalidade atingiu de forma “desproporcionada” as pessoas com mais de 75 anos, mas há sinais da diminuição desse efeito desde a segunda semana de abril, o que atribuem ao resultado das medidas de distanciamento que contiveram a epidemia. Ainda assim, e focando no período de um mês desde a primeira morte por covid-19 no país (a 16 de março), o acréscimo de óbitos foi significativo, disse ao i Alexandre Abrantes, professor da Escola Nacional de Saúde Pública responsável pelo estudo.

Os investigadores apresentam dois tipos de cálculos e ambas apontam para, pelo menos, mais 1200 mortes do que seria esperado. Analisando as médias de mortes diárias nos últimos dez anos no mesmo período, estimam mais 1257 mortes. Já fazendo uma modelação do número de mortes esperado nestes meses, chegam a mais 1214 mortes. E, destas, os investigadores revelam que 1030 dos óbitos acima do que seria expectável registaram-se em pessoas com mais de 75 anos, havendo um excesso de 67 óbitos de pessoas com 65 a 74 anos. Os aumentos podem ser ainda mais significativos, admite Alexandre Abrantes, isto porque, ao mesmo tempo que estão a morrer mais idosos, as curvas da mortalidade nacional estão a ser pressionadas para baixo pela redução do número de óbitos por causas externas, onde se incluem acidentes de trabalho, rodoviários, vítimas de crimes e suicídios. “Há menos pessoas na rua e a trabalhar, por isso admitimos que o excesso de mortalidade que apresentamos por causas naturais pode ser uma estimativa conservadora”.

600 mortes por explicar O estudo, que para já resulta de uma análise estatística dos dados disponíveis na plataforma nacional de vigilância da mortalidade, não permite ainda tirar conclusões sobre quais as causas de morte que aumentaram. O que fizeram foi separar as chamadas mortes por causas naturais (doença) das mortes por causa externa. “Observaram-se 10 445 óbitos e o modelo cronológico estima que se teriam registado 9 231 óbitos, se não tivesse havido pandemia, o que representa excesso de 1 214 óbitos durante esse período”, conclui a modelação.

Usando os dados reais, o aumento começou a notar-se a partir de 11 de março, data em que se quebrou o que seria a expectativa habitual numa situação sem pandemia, que é a tendência para os meses de março e abril registarem gradualmente menos mortes por dia, já que é nos meses de inverno, com mais frio e mais infeções respiratórias, desde logo a epidemia de gripe, que morrem diariamente mais pessoas no país (por vezes surgem picos no verão com as ondas de calor).

A análise da ENSP conclui que nos 30 dias após o 1.º óbito por covid-19, registaram-se 14 dias em que o número de mortes ultrapassou o valor médio dos 10 últimos anos mais dois desvios padrão, patamar usado para definir o que poderia ser expectável e calcular o excesso de mortes. Tendo em conta que nesse período foram confirmadas 599 mortes por covid-19, as restantes, pelo menos 615, poderão ter resultado de diferentes fatores. Alexandre Abrantes admite que em algumas situações possam ter sido mortes relacionadas com covid-19, recordando que nas primeiras semanas da epidemia não eram realizados tantos testes como atualmente e que o critérios para despiste do vírus também foram progressivamente sendo alargados. O investigador acredita, assim, que que possa haver assim uma “subestimação” no número de mortes relacionados com a infeção.

O estudo sugere ainda três outros efeitos. Como muitas pessoas que morrem com infeção por covid-19 têm outras doenças, as mortes podem ter sido classificados como causadas por outra das comorbilidades. Por outro lado, os números poderão incluir pessoas com doenças agudas ou crónicas graves que possam não ter procurado o sistema de saúde, “por medo de serem contaminadas por covid-19, tendo falecido sem assistência” ou ainda pessoas com doenças agudas ou crónicas graves que, tendo procurado os serviços de saúde, “encontraram as estruturas, os profissionais e os equipamentos fortemente dedicados à resposta aos doentes com a covid-19, não tendo por isso recebido o nível de atenção que teriam recebido em circunstâncias normais”. Alexandre Abrantes adianta ao i que a ENSP já solicitou à DGS informação sobre causas de morte nos certificados de óbito, para uma análise mais fina, estando a aguardar a sua libertação.

Alertas de mortalidade por concelho Para o investigador, a principal conclusão a retirar da análise é a necessidade de adotar uma estratégia para proteger a população mais vulnerável ao longo do próximo ano. “Haverá certamente uma segunda e uma terceira ondas, provavelmente serão mais fracas, embora na gripe espanhola a segunda onda tenha sido quase tão forte como a primeira. Temos de nos preparar para isso, reforçando cuidados intensivos no SNS e resposta a estes grupos onde tem havido maior mortalidade”, defende, considerando que a estratégia não deve focar-se tanto no número de infeções mas nos óbitos como indicador do que pode ser feito e onde intervir. “Podemos diminuir a progressão do vírus com algumas medidas e mas sobretudo tentar garantir que as pessoas não morrem por isto”.

Alexandre Abrantes fala de uma “epidemiologia de precisão” para prevenir a paralisação geral do país: “Se num local tivermos mais do dobro de infeções ou de mortes que seria de esperar numa semana, intervir aí”. A ENSP está já a trabalhar num projeto de geolocalização de óbitos por município e freguesia e o investigador defende que a ferramenta poderá ser útil para as decisões a nível local. “A ideia é termos um mapa em que dizemos a cada semana quantas mortes são esperadas e quando se verificar que se ultrapassa um limiar as autoridades podem intervir para conter a doença nessa área e evitar que sejam necessárias medidas de largo espetro. Não se pode estar a aplicar lockdowns gerais mês sim, mês não, tem de haver precisão e uma análise dos casos esperados e verificados”.

Uma das explicações que a DGS chegou a apontar para o aumento da mortalidade foi um inverno menos severo em termos de mortes, o que poderia estar agora a afetar o padrão de mortalidade. O estudo da ENSP menciona esse efeito, mas Alexandre Abrantes defende que é preciso perceber se as mortes poderiam ser evitáveis. “As pessoas têm de morrer de alguma coisa, mas hoje em dia a esperança de vida é de 82 anos, não fico satisfeito se uma pessoa de 75 anos falecer, porque está a perder anos que podia ter de expectativa de vida”. Poderão os indicadores de esperança de vida vir a recuar ? Respostas só no final da pandemia, mas o investigador explica que o indicador é mais afetado pela variação das mortes nos primeiros anos de vida do que pela população mais velha. “Não penso que vá alterar muito, porque muitas das mortes por covid-19 estão a acontecer depois do patamar dos 82 anos anos”.