Bem prega frei Tomás…

O regime está assim tão débil e inseguro a ponto de uma crise sanitária poder deitá-lo por terra?

Pelos acasos do calendário gregoriano, esta coluna sai no dia em que o 25 de Abril completa 46 anos. Uma idade madura e uma efeméride que ocorre, ironicamente, em pleno estado de emergência renovado.

Apesar das restrições severas em vigor, a data celebra-se com sessão solene no Parlamento, embora com menos deputados e convidados, graças a um arranjo de última hora, ouvidas as autoridades de saúde, para compor o ramalhete.

O país ficou dividido, com petições a favor e contra esta ideia, quando nem sequer as famílias se podem despedir dos seus defuntos.

Já se escreveu muito, em variados tons, sobre esta teimosia cerimonial. Façamos o mesmo.

Claro que o 25 de Abril é um acontecimento relevante, que mudou o regime e que o país não esquece. Mas não é um ‘seguro de vida’ cujo ‘contrato’ exija renovação anual, sob pena de caducar.

E, no entanto, foi essa a mensagem infeliz que o presidente da Assembleia da República passou, ao defender que «celebrar o 25 de Abril é dizer que não sairá desta crise qualquer alternativa antidemocrática».

O regime está assim tão débil e inseguro a ponto de uma crise sanitária poder deitá-lo por terra?

Se nos cingíssemos às convicções de Ferro Rodrigues, suspeitaríamos que sim. A segunda figura do Estado já avista «núcleos fascistoides que se julgava que não existiam, mas existem», temendo o «avanço de alternativas de extrema-direita». A alma do antigo MES veio ao de cima.

Recorde-se que em outubro de 1974 já Ferro Rodrigues preconizava «um ataque cerrado ao capital financeiro, à banca fundamentalmente», porque «se não se cortar a espinha dorsal ao capital financeiro todas estas conquistas não foram conquistas». Aparentemente, não mudou muito.

Em contraste , o primeiro-ministro António Costa, à saída de um encontro com o cardeal-patriarca de Lisboa, D. António Clemente, elogiou a atitude da Igreja nesta crise, realçando ter sido «um exemplo e uma referência na forma de celebração da fé».

De facto, os crentes foram convidados a orar a Deus em casa e a celebrar a Páscoa – evento maior do mundo cristão – por via remota, sem se juntarem na igreja; e as procissões não saíram do adro.

Fátima será, também, celebrada sem peregrinos. E até o cardeal D. António Marto soube explicar que «suspender esta peregrinação de Maio, nos moldes habituais, é um ato de responsabilidade pastoral e também um profundo ato de fé».

Somos um país predominantemente católico, mas nem aos seus fieis – nem aos seguidores de outras confissões religiosas – ocorreu violar a quarentena para se juntarem nos templos.

Então, por que não seguir esses exemplos em tempo de confinamento? Um mistério.

Após o exercício de arrogância, Ferro Rodrigues ainda se socorreu do ‘álibi’ de que o Parlamento não fechou. É verdade. Bastaria, então – e teria uma forte carga simbólica, como já foi dito –, que a sessão evocativa tivesse o Presidente da República como único convidado, e cada partido fosse representado por um deputado.

Mas, para isso, seria necessária uma grandeza e clarividência que estão a rarear em São Bento e que fazem lembrar, com saudade, anteriores presidentes socialistas da Assembleia da República, desde Henrique de Barros e Vasco da Gama Fernandes a Almeida Santos e a Jaime Gama, que souberam estar acima das querelas partidárias e nunca destrataram os adversários, nem se moveram por miopias de campanário. Outros tempos.

A seguir ao 25 de Abril, vem o 1.º de Maio. Mandaria o bom senso que fossem desaconselhadas ações de rua, suscetíveis de gerar aglomerações de manifestantes, pouco condizentes com os atuais limites de circulação.

Não foi esse o entendimento da CGTP, que escolheu a Alameda D. Afonso Henriques para as suas celebrações, embora «garantindo a proteção da saúde e o distanciamento sanitário de todos quantos participarão». Uma ‘história da carochinha’ que, segundo a nova líder, Isabel Camarinha – oriunda das sacristias do PCP –, não mereceu da parte do Governo «nenhuma oposição».

O que está em causa, tanto no 25 de Abril, como, principalmente, no 1.º de Maio, é a noção que se transmite aos portugueses de que a imposição de ficar em casa – para alcançarmos a ‘curva achatada’ ou o ‘planalto’ – pode ter exceções de conveniência política.

A propósito do exemplo da Igreja, citado por António Costa, vale a pena recordar o Papa Francisco, no início da Semana Santa, quando atravessou sozinho, a pé, uma Praça de S. Pedro iluminada mas vazia de gente para celebrar a bênção Urbi et Orbi. E recordar que estamos «todos no mesmo barco» e que «ninguém se salva sozinho».

Palavras tão simples como sábias. Ao contrário, por cá, há quem queira soltar os demónios da ideologia em vez de cultivar a democracia. Bem prega frei Tomás…