OMS. Os factos por trás das críticas

Donald Trump tornou-se o maior crítico da Organização Mundial de Saúde. Bode expiatório ou encobrimento?

Se a falta de coordenação face à pandemia de covid-19 já é uma acusação recorrente, numa próxima crise de saúde pública poderá ser pior. Os Estados Unidos já cortaram a sua contribuição para a Organização Mundial de Saúde (OMS) – mais de 400 milhões de dólares (370 milhões de euros) em 2019, cerca de 15% do seu orçamento. Agora, ponderam a criação de uma organização mundial de saúde paralela, com os seus «parceiros em todo o mundo», disse o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, à Fox News. O objetivo seria contornar as «falhas» da OMS. Mas que «falhas» são essas?

A primeira, talvez a mais grave aos olhos de Washington, é o alegado ‘chino-centrismo’ da OMS. Para o Presidente dos EUA, Donald Trump, a agência das Nações Unidas foi cúmplice de um encobrimento da pandemia na sua fase inicial. A acusação é recente, e tem sido vista por muitos como uma desculpa de Trump para a atual catástrofe. Coincide com a aceleração da pandemia nos EUA – já ultrapassaram os 887 mil casos registados e as 50 mil mortes – e com críticas ao caos e ineficácia na Administração norte-americana. Aliás, a 24 de fevereiro Trump tweetava que «o CDC [Centros de Controlo e Prevenção de Doenças] e a Organização Mundial [de Saúde] têm estado a trabalhar no duro e de forma muito inteligente».

Conspiração chinesa?

É verdade que um estudo recente na Lancet, uma das mais conceituadas publicações científicas de medicina, verificou que o número real de infeções na China poderia ser até quatro vezes superior aos casos registados. Mas no Brasil, por exemplo, estima-se que sejam até 12 vezes superiores.

Na China, há a particularidade de os casos assintomáticos de covid-19 não terem sido contabilizados até há algumas semanas. Se isso se deveu a encobrimento orquestrado ou ao facto de não ser claro que houvesse transmissão por pessoas sem sintomas – ao contrário do SARS, um primo próximo do vírus que causa a covid-19 – é uma análise política.

No entanto, importa não esquecer Li Wenliang, o oftalmologista de Wuhan que fez soar os alarmes quanto à covid-19, logo em finais de dezembro, e morreu da doença um mês depois, aos 34 anos. Postumamente saudado como herói pelo mundo fora, em vida Wenliang foi duramente repreendido pelas autoridades locais, acusado de «fazer comentários falsos» e «perturbar gravemente a ordem social» – o médico partilhou a sua provação nas redes sociais, segundo a agência noticiosa chinesa Caixin.

Contudo, enquanto as autoridades de Wuhan negavam a transmissão do novo coronavírus entre humanos, com consequências trágicas para a sua própria população, em Xangai os cientistas do Centro Clínico de Saúde Pública já se apressavam a sequenciar o genoma do vírus: no início de janeiro avisaram as autoridades locais para o perigo.

É que muitas vezes fala-se da China como entidade homogénea, não um país com vários níveis de poder, com uma área próxima da Europa e quase o dobro da população. Apesar da grande centralização do Estado chinês, as ações das autoridades de Wuhan ou de Xangai não são necessariamente decisão de Pequim.

Aliás, o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, já teve de pedir publicamente às autoridades locais que não escondam casos de covid-19, para manter os números baixos. É que o autoritário regime chinês não é conhecido por aceitar de ânimo leve que os seus dirigentes falhem nas suas tarefas, como conter o coronavírus.

No entanto, alguns estranham como na China, onde o surto começou, as medidas mais duras de isolamento se focaram sobretudo em Wuhan, enquanto, dos EUA à Europa, milhões se viram forçados a ficar em casa. As pistas estão em duas fases da pandemia, como definidas pela OMS: contenção, quando é possível isolar cadeias de transmissão; e mitigação, quando a doença está tão espalhada que apenas se consegue diminuir os seus impactos. No caso do novo coronavírus, com isolamento social, entre outras medidas.

À excepção de Wuhan, e mais recentemente em Suifenhe, na fronteira com a Rússia, a vasta maioria do território chinês não passou da primeira fase. Já na Europa, Itália tentou fazer o mesmo, isolando a Lombardia, no norte, sem sucesso – já era tarde de mais. Entretanto, esta sexta-feira, dos mais de 2 milhões e meio de infeções registadas em todo o mundo, com mais de 190 mil mortes, mais de um milhão desses casos e 110 mil das mortes foram na Europa, segundo o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças.

Falhanço da OMS?

A OMS avisou no Twitter, a 31 de dezembro: «A China registou um foco de casos de pneumonia, sem mortes, em Wuhan, província de Hubei». Entretanto, o comité de emergência da OMS reuniu entre 22 e 23 de janeiro – a comunidade científica internacional só confirmou a transmissão do novo coronavírus entre humanos no dia seguinte – e, após um voto dividido e uma nova reunião a 30 de janeiro, foi declarado uma Emergência de Saúde Pública de Preocupação Internacional (PHEIC, na sigla inglesa).

«A OMS demorou apenas quatro dias a informar o mundo sobre a existência de uma pneumonia atípica. Demorou apenas 30 dias a declará-la PHEIC. As acusações do Presidente Trump são, então, sem fundamento», concluiu o diretor da Lancet, Richard Horton.

Contudo, talvez o período que suscite mais críticas seja a demora entre a declaração de PHEIC e a de pandemia, que só surgiu apenas a 12 de março – quando já haviam mais de 121 mil infeções por covid-19 registadas por todo o mundo. A demora custou tempo precioso, recursos que poderiam ter sido alocados para ventiladores ou prevenção e não foram.

Uma das explicações é a memória da última pandemia, em 2009, com o H5N1, vulgo gripe das aves. A declaração levou Governos de todo o planeta a ativar dispendiosos programas de prevenção: a gripe das aves acabou por não ser a calamidade que se previa e a agência da ONU ficou sob fogo. «Talvez seja a razão pela qual a OMS parece ansiosa por evitar a palavra P», sugeriu a New Stateman em finais de fevereiro, questionando-se sobre a demora.

Esta não é a única crítica apontada à OMS. Entre outras está a recomendação do uso ou não de máscaras cirúrgicas ou de pano. Cada vez mais Governos recomendam, ou até obrigam, ao uso de máscaras de pano no quotidiano. Já a agência da ONU defende o seu uso apenas por pessoas que possam estar infetadas, profissionais de saúde, trabalhos de risco, ou quando se estiver em contacto com infetados.

Isto é visto como uma contradição por muitos. Mas a posição da OMS mantém-se: «Não há nenhuma evidência específica que sugere que uso de máscaras pela população geral tem algum benefício potencial», declarou em finais de março o diretor da organização para situações de emergência, Mike Ryan. O uso generalizado de máscaras cirúrgicas pode provocar a escassez de proteções para profissionais, mas a organização não desaconselha o uso de máscaras de pano. Com os devidos cuidados, claro.

Outro ponto de discussão, levantado pelo Presidente dos EUA, foram as críticas da OMS às proibições de tráfego internacional para desacelerar a pandemia de covid-19. «Este é o mais agressivo e completo esforço para confrontar um vírus estrangeiro na história moderna», declarou na altura Trump.

Contudo, não foi apenas a OMS a afirmar que era uma medida tardia ineficiente. Então, o país já tinha pelo menos 1323 casos em 38 estados – hoje suspeita-se que seriam muitos mais. «Os EUA têm mais casos que alguns dos países que estão a banir», lembrou então François Balloux, professor no University College, em Londres. É «completamente ridículo», acrescentou à Times.

«Em duas semanas, vamo-nos arrepender de desperdiçar tempo e energia em restrições de viagens e desejar termo-nos focado mais em preparação dos hospitais», avisou no Twitter Tom Bossert, antigo conselheiro de segurança nacional de Trump.

Influência chinesa na OMS?

Mesmo acreditando nas teorias de Trump e dos seus aliados quanto à China e à sua alegada influência na OMS – que ganham cada vez mais tração em correntes no Whatsapp e publicações nas redes sociais -, importa perceber exatamente que influência seria essa e como é exercida.

Financeiramente, não há muito por onde pegar: os EUA têm muito mais influência a esse nível que a China. Até a Fundação Bill e Melinda Gates teria mais peso. Afinal, são os segundos maiores contribuidores para a OMS, com um total de 531 milhões de dólares (cerca de 491 milhões de euros) em 2018 e 2019.

Já a China, a segunda economia mundial, cedeu o equivalente a 80 milhões de euros nesse período: nem sequer entra no top 10 de doadores. Cada país tem um mínimo obrigatório de contribuições, sendo as restantes voluntárias.

No entanto, a promessa de fundos seria sem dúvida bem vinda pela organização. «O potencial da China se tornar uma contribuidor significativo para a OMS seria necessariamente uma perspetiva aliciante», notou Garets Geddes, do Instituto Mercator para Estudos Chineses, à DW. Outro fator poderia ser a ameaça de bloquear o acesso da agência a território chinês.

Entretanto, já há linhas a definem-se na «batalha global das narrativas», como lhe chama o responsável pela política externa da União Europeia, Josep Borrell «Claramente há coisas que ocorreram e que não sabemos», disse o Presidente francês, Emmanuel Macron, ao Financial Times. Já o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Dominic Raab, pediu «uma revisão aprofundada de todo o ocorrido, incluída a origem da eclosão da pandemia». E a chanceler alemã, Angela Merkel, pediu mais «transparência» à China.

Se os países europeus endureceram o tom quanto à China, junto com a Austrália, boa parte dos líderes uniram-se em redor da OMS. Esta sexta-feira Macron juntou-se a Angela Merkel e ao diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, prometendo 7,5 mil milhões de euros para a investigação de uma vacina contra o coronavírus, acessível a todos os países de igual forma.

Também estiveram presentes os chefes de Estado da África do Sul, Espanha, Itália e representantes do Reino Unido, bem como o secretário-geral da ONU, António Guterres. «Estamos na luta das nossas vidas. Estamos nela juntos e sairemos dela mais fortes juntos», disse Guterres. A notável excepção eram os EUA.

Métodos suicidas

Entretanto, Trump não facilitou a vida aos seus defensores. Na conferência de imprensa de quinta-feira recomendou, perante milhões de espetadores, o uso radiação ultravioleta dentro do corpo ou injeções de desinfetante contra a covid-19.

Foi exatamente este género de ‘curas milagrosas’ que causou um aumento abrupto de envenenamentos nos Estado Unidos desde março, à medida que aumenta o desespero com a pandemia, segundo números do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças.

A condenação da comunidade médica não se fez esperar. Nem a injeção mais diluída dos desinfetantes mais comuns seria segura – e a mera inalação de desinfetantes como a lixívia pode provocar danos irreversíveis aos pulmões. Aliás, ingerir produtos de limpeza «é um método comum que as pessoas usam quando se querem matar», lembrou o pneumologista Vin Gupta à NBC.