‘Perder para ganhar’

Tenho tempo para a família como nunca tive em Londres, danço e canto ao som de música portuguesa com a minha filha, desde Marco Paulo a Ana Moura, tudo me sabe bem e tudo me alegra. Brinco com a minha filha como já nem me recordava ser possível. Fazendo palermices sentimo-nos mais próximos que nunca,…

por Diogo Moreira da Cruz
 

Este vírus já nos venceu faz tempo. Ele não tem vida, só ganha vida quando a forma como vivemos e estamos interligados serve de veículo perfeito para a sua expansão.

O Reino Unido tem sido sempre lento a responder à pandemia, deixando que o vírus alastre de forma rápida, rebente com o sistema de saúde e provoque um número de mortos de cenário apocalíptico.

Estive em Lisboa há três semanas, tinha a viagem planeada faz meses, era somente um fim de semana prolongado para celebrar algo único e muito especial: um grande amigo casa-se e eu sou o padrinho. Orgulhoso, e eu próprio apaixonado, programei o fim de semana atempadamente e de forma meticulosa para que nada falhasse. A minha mulher gozava-me, dizendo por diversas vezes que o casamento não era o meu.

Além do casamento, aproveitei para marcar dois jantares com amigos, e outros dois almoços, com amigos e família. Somente dois dias antes de chegar, tudo mudou, todos os amigos cancelavam, uns sem apresentar razão aparente, notando-se o receio de serem incompreendidos nos seus motivos: o coronavírus letal, a ameaça. Outros, mais abertos e sinceros, mencionavam que a OMS (Organização Mundial da Saúde) era clara, era preciso ficar em casa, fazer distanciamento social, evitar o contacto a todo o custo para vencer a pandemia.

Jamais pensei que fosse possível ficar feliz por não ver amigos, mas assim foi. Não vi ninguém, nem um simples café, um olá, nada. Tudo porque os portugueses tiveram consciência rápida do inimigo perigoso que se aproximava. Estava Portugal ainda ‘somente’ com cerca de 60 casos, mas já se tomavam imensas precauções e evitava-se sair de casa.

Vi uma Lisboa de ruas vazias, como nunca antes visto. Vi as ruas de Alvalade, bairro onde cresci, com movimento reduzido em 90%, somente uns carros passavam nas avenidas principais, os passeios estavam vazios e as lojas também. Documentei com vídeos e fotos um cenário que nunca tinha visto.

Mas estava feliz, sorri imenso. Eu, que sou um crítico da classe política portuguesa, que não deixo de dizer que há demasiada corrupção, que me senti muito infeliz com o abuso de vistos gold, com a entrada de dinheiro sujo angolano, entre muitos outros casos, acho que aqui é diferente. Admito que, por mais que se possa ridicularizar algumas das coisas que têm sido ditas pelos governantes e responsáveis pela resposta à pandemia em Portugal, num todo, a resposta comum é impressionantemente positiva. Portugal e os seus líderes foram rápidos e eficazes, os resultados estão à vista, estão de parabéns.

Voltando ao RU, aqui, a resposta faz-se lentamente, sempre muito atrás do vírus, sempre a falhar, o que custa um elevado número de vidas perdidas. Não tenho qualquer interesse pelos planos do Governo do RU – estes só revelam uma incrível falta de perceção do que é este vírus e de como o ser humano funciona. Não existe capitalismo para o vírus, não existe economia, e nós, humanos, por mais que nos digam para estarmos calmos e que continuemos a trabalhar, vamos seguir o nosso instinto animal de defesa, de combate: se o vírus mata e se espalha, ninguém vai seguir a sua vida normal. Tentar salvar a economia é tão ilusório como rezar a Deus e esperar que tudo se resolva, mas sendo a segunda opção uma ótima forma de lavar a alma e sentirmos que conseguimos superar isto.

Estou em casa há três semanas, trabalho de casa e, em média, tenho saído somente duas vezes por semana de casa, saídas breves, não mais de uma hora, e normalmente evito sair do carro. O objetivo é bem definido, normalmente fazer umas compras.

Admito que trabalho menos agora, tenho bem mais distrações, faço longos almoços, lavo a louça, aspiro a casa e gozo momentos únicos em família. Ganhei imensas coisas, a cidade de Londres é fabulosa, mas consome-nos, há sempre o objetivo de ter mais, conseguir ter melhor emprego, ganhar mais, consumir e cobrir despesas. Tudo gira à volta de um mundo altamente capitalista, com o qual não me identifico em relação às desigualdades e ao egoísmo, mas com o qual descubro o prazer de trabalhar no que adoro. O meu trabalho dá-me prazer imenso, dá-me verdadeiro gozo, e sinto que passando nós tanto tempo útil das nossas vidas a trabalhar, Londres é perfeita.

Contudo, redescobri agora que é preciso perder para ganhar. Perdi a liberdade de circular pela cidade livremente, de ter encontros sociais, de ir comer fora, até de visitar amigos em casa e receber visitas.

Mas ganhei imenso. Tenho tempo para a família como nunca tive em Londres, danço e canto ao som de música portuguesa com a minha filha, desde Marco Paulo a Ana Moura, tudo me sabe bem e tudo me alegra. Brinco com a minha filha como já nem me recordava ser possível. Fazendo palermices sentimo-nos mais próximos que nunca, e ambos agradecemos. A minha mulher observa muito e participa um pouco em toda a loucura à sua volta, rimo-nos mais, sorrimos, vimos até filmes portugueses que tinha prometido ver e nunca tinha concretizado. Falamos ainda mais e até cozinhamos melhor.

Perdem-se vidas, contam-se números recorde com a expansão do vírus que jamais queríamos ver, uma consciência e tristeza absorvem-nos quando se veem notícias, quando se observam os números. Contudo, estou a comunicar mais, falo mais com amigos e família num dia do que fazia num mês inteiro. Sei mais do que fazem os meus amigos e de como todos estão, e não falo por ver social media (que raramente uso), mas porque comunicamos direta e intensamente.

Estarei sem emprego em breve, já que trabalho a projeto e este tem final previsto já neste mês de abril. Não há qualquer perspetiva de emprego, não há no mercado qualquer outro projeto que possa vislumbrar e ter como opção. E se isto tem acontecido sem pandemia, eu estaria em stresse, com níveis de preocupação elevados que não me deixariam gozar momentos de descanso e lazer. Mas a realidade é outra, não estou minimamente preocupado, quero somente ter o mínimo, gozar este tempo em família e deixar tudo o que me parece supérfluo, tudo o que pareça excedente porque, afinal, este coronavírus trouxe-me isso, a consciencialização do que realmente importa, do quanto ganho em me focar naqueles que me rodeiam. A minha voz muda, o meu sorriso abre-se, a minha disposição melhora.

E entendo aqueles que sofrem em casa e que perguntam quando tudo isto vai acabar, e cuja angústia de estar 24 horas em família possa trazer mais tensão que bênção. Não é o meu caso, em que tudo me sabe melhor e em que vejo como sou sortudo por estar rodeado de quem amo e me ama.

Estando longe de pais e manas, estou agora mais perto. Como bom português, sinto-me saudosista, recordo-me de como foi bom crescer com casa cheia, irmãs a correr à minha volta e brincar até não poder mais, ter também zaragatas e conflitos para depois saborear a reconciliação entre manos.

Um bem-haja a todos e que seja possível perder para ganhar.