Reportagem num lar limpo e noutro infetado

Dois lares, ambos legais. Mas um limpo e o outro infetado. Um em que a doença ficou à porta, outro em que entrou sem cerimónia. Num e noutro, as jornalistas do SOL também tiveram de adotar comportamentos distintos: no primeiro só penetraram após fazerem o teste com resultado negativo, no segundo entraram sem limitações e…

A partir de certa idade torna-se um verdadeiro jogo querer ou desquerer morrer. Benedita andou nesse vaivém fúnebre, mas saltou fora a tempo. Já lá vão 76 anos de vida, mais de metade correram lentamente, sem ser dona do seu destino, e não é agora um ‘bichinho’ qualquer que anda ao desgoverno pelo mundo que lhe vai roubar a alegria conquistada: «Eu não quero morrer já. Quem é que quer morrer já?». Para ela, pouca atreita aos assuntos de Deus, a morte não é natural: «Sei que há um vírus por aí, até já me meteram uma coisa pelo nariz acima para ver se ele estava comigo – e parece que está. Mas, olhe, se o meu marido não me matou, também não é ele que vai dar cabo de mim!».

Há quase duas semanas que Benedita vive como uma refém, mas convive bem com a solidão. A 7 de abril foi a primeira de um grupo de 20 inquilinos da Casa do Lordelo, um lar no coração do Porto, a revelar que o vírus ali se alojara.

Os dias que antecederam a terrível descoberta foram, no entanto, tão assustadores como os piores da sua vida. Nessa altura, companhia não lhe faltava. No refeitório, fazia as refeições junto à seção feminina, desbravadora de intrigas que davam mais ritmo à vida, e o pessoal do Centro de Dia andava, como era hábito, muito animado. Mas os telejornais, sempre com a mesma cantiga, foram espalhando o terror.

 

Um taipal de fumo negro dividiu as gerações

 Um taipal de fumo negro dividira abruptamente as gerações. O adversário, cobarde, sem que se conhecesse ainda a sua genética, escolhera os mais frágeis para principais vítimas. E, no país, o poder político, que nunca está preparado para as grandes catástrofes, seguia a inclinação do vírus, deixando os mais velhos ao abandono.

Nesse tempo, um lar em Famalicão foi notícia durante uma semana e deixou Benedita aterrorizada. A pouco mais de 40 quilómetros dali, na Casa Pratinha, depois de todas as funcionárias terem sido infetadas, os utentes com idêntico prognóstico tinham ficado encerrados e entregues à sua sorte. Só a pressão dos media conseguira inverter as orientações políticas do Governo.

Pela janela do quarto, a luz oblíqua do sol da manhã ilumina-lhe o cabelo cor de aço. O seu olhar baloiça entre a jornalista e o ecrã do televisor, sempre sintonizado num universo prodigioso: o canal Disney. Treinada para sobreviver, Benedita defende-se. Uma expressão de medo esconde por segundos o sorriso que lhe adoça o rosto: «Não gosto de ver as notícias, só dão coisas tristes».

Fora do seu quarto, sempre fechado, o silêncio impera. Nesta Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), que costuma funcionar também como Centro de Dia, a infeção entrara sem diplomacias, apanhara uma dezena de funcionárias e nem a diretora executiva escapara. Joana Roncon, que acedera ao pedido da jornalista do SOL para passar 24 horas naquele espaço antes de saber que também ela fora contaminada, julgara ter tomado, a tempo e horas, as providências necessárias; mas a reclusão total era impossível.

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