Receitas fiscais já caíram mas vão descer ainda mais

Estado arrecadou menos 54,3 milhões de euros em impostos até março, de acordo com os dados da DGO, mas deverão cair mais. Já a despesa deverá disparar com a pandemia.

Os números não são animadores. A execução orçamental em contabilidade pública das administrações públicas registou no primeiro trimestre um saldo positivo de 81 milhões de euros, o que representa um agravamento de 762 milhões de euros face a igual período do ano passado, já que Portugal entrou em estado de emergência na segunda quinzena de março. Trata-se de uma queda de 90% face a igual período do ano passado e ainda pouco contabiliza o impacto da pandemia provocada pela covid-19. Ainda assim, o ministério de Mário Centeno já usa esta ‘crise’ como justificação para este resultado. «A execução do primeiro trimestre já evidencia os efeitos da pandemia de covid-19 na economia e nos serviços públicos, na sequência das medidas de política adotadas para mitigar esses efeitos». E os resultados estão à vista: assistiu-se a um menor crescimento da receita (1,3%) face ao da despesa (5,3%).

Estes dados não surpreenderam os analistas contactados pelo SOL. «O impacto da paralisação da economia para conter a pandemia era previsível, dado um crescimento da receita inferior ao da despesa», refere André Pires, da XTB.

Também para Nuno Caetano, da Infinox, «era expetável esta queda, visto que houve um menor crescimento da receita face ao da despesa, assim como o surgimento e o agravamento da pandemia ainda no mês de março».

 Só nesse mês assistimos ao desaparecimento do excedente que tinha vindo a ser acumulado entre janeiro e fevereiro, com um saldo positivo de mais de 1,2 mil milhões de euros. Na altura, o Governo chegou a admitir que se tratava do valor mais elevado de sempre. Esta quebra já era expetável, tanto que Mário Centeno já este mês revelou que o aumento da despesa e a diminuição da receita irão obrigar «seguramente» à aprovação de um «Orçamento suplementar». Ainda assim, o governante chamou a atenção para que é preciso ir gerindo as «margens orçamentais» para que, quando for apresentada uma proposta de Orçamento suplementar, esta surgir «sem precipitação». E afirmou: «Se a incerteza é inimiga da economia, a precipitação nas tomadas de decisão também o é, porque é inimiga das boas decisões».

Estes argumentos não convencem os analistas. Ainda assim, André Pires acredita que, nos próximos meses, o impacto será atenuado pelo levantamento de restrições. Mas lembra que «o estado de emergência (com as consequentes restrições às atividades económicas e às deslocações) apanhou muitos de surpresa. Entretanto, muitas empresas procuraram adaptar-se, e as próprias administrações públicas também se ajustaram ao novo paradigma». Desta forma, «uma retificação do Orçamento do Estado parece cada vez mais inevitável», afirma ao SOL o analista da XTB.

Também Nuno Caetano admite que a covid-19 veio alterar por completo as perspetivas e os pressupostos com que o Orçamento de Estado foi pensado e realizado. «O paradigma económico vê-se completamente alterado devido à pandemia, e há que retificá-lo. A despesa pública já tem estado a aumentar, assim como a receita fiscal a diminuir, e há que criar alternativas para incentivar a retoma económica, para que as consequências futuras não sejam ainda maiores», refere ao SOL o analista da Infinox.

 

Receitas desaceleram

O comportamento da receita, de acordo com os dados divulgados pela Direção-Geral do Orçamento (DGO), reflete um decréscimo da receita fiscal (-0,5%), influenciada pelo crescimento de apenas 0,1% do IVA, «justificado por um aumento dos reembolsos, pela diminuição do IRC em 30,5%, devido ao adiamento do PEC, e pelo prolongamento do pagamento do imposto do selo até abril de 2020».

O documento diz que a queda relativa ao imposto do selo
(-47,5%) representa uma redução de 200 milhões de euros nos cofres do Estado. No entanto, lembra que este recuo pode ser explicado pela introdução de um novo modelo declarativo do imposto, cuja entrega e pagamento foi permitido realizar até 20 de abril sem quaisquer penalidades.

Com esta alteração, «os montantes relativos aos meses de janeiro e fevereiro de 2020 poderiam ser pagos já no segundo trimestre, contrariamente ao ocorrido no período homólogo, quando foram pagos ainda no primeiro trimestre» diz o documento. Também as receitas do ISV (imposto sobre os veículos) caíram 19,9%. No entanto, estas descidas são atenuadas pelo crescimento do IRS (+3,2%), de outros impostos diretos e do imposto de consumo sobre o tabaco (+23,5%). Feitas as contas, até março, o Estado arrecadou menos 54,3 milhões de euros em impostos face a igual período do ano passado, num total de 10,4 mil milhões de euros.

 

Despesas sobem

Já a despesa primária cresceu 6,2%, influenciada pelo expressivo crescimento da despesa do SNS, em 12,6%, nomeadamente em despesas com pessoal (+7,2%). A despesa com salários dos funcionários públicos cresceu 4%, corrigida de efeitos pontuais. «Destaca-se o reforço das contratações de profissionais afetos ao SNS, o que se traduziu num aumento homólogo de 5,1%, correspondendo a 6596 trabalhadores».

O aumento das despesas com pessoal resulta ainda da conclusão do processo de descongelamento das carreiras – iniciado em 2018 – e dos acréscimos remuneratórios ocorridos em 2019, que no período homólogo registavam apenas 50% do seu impacto, destacando-se o aumento de 4% da despesa com salários dos professores, refere a DGO.

 O ministério de Mário Centeno chama ainda a atenção para o aumento da despesa da Segurança Social (+6,3%), associada à despesa com pensões (4,9%) e prestações sociais (6,3%), tais como o abono de família (11,9%) e a prestação social para a inclusão (38,4%) dirigida a pessoas com deficiência.

 

Investimento público duplicou

Em março, o investimento público aumentou 103% na administração central, «excluindo PPP, refletindo a forte dinâmica de crescimento no âmbito do plano de investimentos Ferrovia 2020 e de outros investimentos estruturantes, e ainda a aquisição de material médico para o combate à covid-19, destinado aos hospitais», refere o gabinete de Mário Centeno.

Já os pagamentos em atraso reduziram-se em 312 milhões de euros face a março de 2019, «explicados pela diminuição dos pagamentos em atraso no SNS em 354 milhões de euros, cujo stock de março atingiu o valor mais baixo de sempre neste mês», revela o documento.

Para a evolução homóloga contribuíram sobretudo os hospitais EPE, «que registaram uma redução de 354,4 milhões de euros, parcialmente compensada pelo aumento da administração regional em 44,8 milhões de euros», conclui.

 

E agora?

Para os próximos meses, de acordo com os analistas contactados pelo SOL, deveremos assistir a um agravamento devido ao decréscimo da receita fiscal, «assim como ao agravamento da despesa primária, nomeadamente devido ao crescimento da despesa do Serviço Nacional de Saúde. Também a despesa com a Segurança Social deverá aumentar devido ao acréscimo da despesa com pensões e prestações sociais e com todos os mecanismos de apoio às empresas e aos cidadãos que irão enfrentar mais dificuldades por conta da propagação do surto», refere Nuno Caetano.

Também em termos de receitas, de acordo com o analista, é de esperar este abrandamento devido à paralisação da economia, «em que a fonte de receitas se vê afetada pelo decréscimo da receita fiscal, e a perspetiva é que venha a acentuar-se nos próximos meses».