Um mundo a meio gás

A reabertura dos EUA será tão caótica como o fecho do país. Já os países europeus, receosos do desconhecido pós-isolamento, olham com atenção para os seus vizinhos pioneiros.

Nos Estados Unidos e na Europa, onde a pandemia de covid-19 teve maior impacto, até agora, muitos tentam emergir do pesadelo do isolamento social – mas arriscam outro pesadelo, um novo pico de infeções. A política de reabertura terá de fazer equilibrismo entre o risco aceitável para saúde pública e os estragos causados pelo isolamento social. Seja a nível económico, de desemprego ou até para a saúde mental. As grandes perguntas são quando e como.
«É de facto uma escolha moral terrível», notou Boris Cyrulnik, um psicólogo francês e neurologista. «A liberdade levará a mortes, enquanto as restrições e negar às pessoas a sua liberdade vai afastar a morte mas trazer ruína económica», lembrou à Atlantic. 

 Nos EUA, essa decisão está nas mãos dos governadores e até dos presidentes de Câmara. Tudo indica que a reabertura do país será tão fragmentada como o seu fecho, e os estados que foram os últimos a fechar agora querem ser os primeiros a abrir.

O caso mais paradigmático é a Georgia do Sul, que a semana passada reabriu pistas de bowling, salões de beleza e estúdios de tatuagens, sem cumprir o requisito mais básicos sugerido pelo Governo federal: a saber, que hajam 14 dias sucessivos com um declínio das infeções. Também foi dos últimos estados a fechar: o governador, o republicano Brian Kemp, explicou, a 1 de abril, que só nesse dia soube que o novo coronavírus também podia ser transmitido por pessoas sem sintomas – foi amplamente ridicularizado.

O norte-americano médio está mais preocupado que governadores como Kemp. Afinal, três quartos dos receiam reabrir o país demasiado cedo, segundo sondagens da Axios e da Ipsos. Isso não impediu o outro terço da população de fazer muito mais barulho, violando o isolamento social com protestos contra as restrições, onde expressões de apoio a Trump são tão omnipresentes quanto a bandeira nacional. 

Talvez, em parte, devido à pressão, muitos governadores preparam-se para reabrir, com mais ou menos cuidados. Por exemplo, a Florida, cuja definição de serviços essenciais foi questionada por incluir espetáculos de wrestling profissional da WWE, promete «passos de bebé», nas palavras do governador Ron DeSantis. As suas ordens de isolamento social expiram terça-feira, com lojas e restaurantes a reabrir no dia anterior. No caso dos restaurantes, só poderão usar as esplanadas e 25% do espaço interior.

Já em Nova Iorque, epicentro do surto norte-americano, a conversa é diferente. O governador Andrew Cuomo anunciou um plano detalhado para reabrir o estado, com «disjuntores» para quebrar a transmissão de covid-19, através de isolamento social localizado. Os sinais de alerta serão a percentagem de ocupação das unidades de cuidados intensivos, caso ultrapassem os 70%, ou uma taxa de transmissão méda acima de 1,1, por cada pessoa infetada.
A previsão é que a partir de 15 de maio alguns pontos do estado cumpram os critérios, mas não a cidade de Nova Iorque em si. «Lembrem-se, fomos ao inferno e voltámos nos últimos 60 dias», recordou Cuomo. «Temos de nos manter vigilantes. Isto não acabou», acrescentou.

O governador não quer simplesmente reabrir o estado, quer medidas estritas de prevenção e preparação, prevendo possíveis ressurgimentos da doença, como avisam os cientistas. Cuomo quer «reimaginar» Nova Iorque. «O que aprendemos, como podemos melhorar e reconstruir melhor?», questionou. «Porque o objetivo não é regressar ao dia de ontem», lembrou. «O objetivo é avançar». 

Terreno incerto
Naturalmente, países como Espanha, que tem quase 240 mil casos registados e 25 mil mortes, bem como Itália, que ultrapassou as 205 mil infeções, com mais de 27 mil mortes, têm as maiores restrições. Mas começam a desapertá-las, cautelosamente, à medida que cai a taxa de novas infeções.

Em Espanha, a semana passada, já fora concedida uma hora por dia para as crianças brincarem na rua, entre o meio dia e as sete da tarde. E este sábado, a partir das seis da manhã, depois de 48 dias de confinamento, os adultos também podem sair um pouco de casa, para dar uma passeio ou fazer desporto. Têm até às 10 horas, e poderão sair de novo entre as sete da tarde e as 11 da noite. Já os maiores de 70 anos e os seus cuidadores ficam com o horário das 10 horas ao meio-dia e da sete às oito da tarde.

Entretanto, em Itália, muitos preparam-se para regressar ao trabalho, a partir de 4 de maio. Contudo, boa parte das restrições italianas serão mantidas, e as escolas estão fechadas até setembro. «Se a curva de contágios não crescer, vamos permitir a reabertura de lojas, restaurantes ou serviços», anunciou esta quinta-feira o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte.

No entanto, o que vem depois da reabertura continua a ser um grande desconhecido. Não espanta que os países pioneiros sejam observados com atenção pelos restantes, desesperados por pistas.

Por exemplo, no caso da Suécia nem sequer foram aplicadas medidas estritas de isolamento social. A sua taxa de mortalidade devido à covid-19, mais de três vezes superior à Dinamarca, o segundo país nórdico mais afetado, serve de aviso para todos.

Entretanto, o próprio Governo sueco tem admitido erros na gestão da crise e as autoridades locais utilizam medidas cada vez mais desesperadas. Em Lund, no sul, chegaram a espalhar estrume de galinha num parque público, para dissuadir as dezenas de milhares de pessoas que se costumam ali juntar para celebrar a noite de Walpurgis, um festival pagão em honra da primavera. 

«Lund pode muito bem tornar-se um epicentro para o alastrar do coronavírus na última noite de abril», admitiu o responsável da autarquia para o ambiente, Gustav Lundblad, ao jornal sueco Sydsvenskan, justificando o uso de estrume de galinha. «Aproveitamos para fertilizar os relvados e ao mesmo tempo vai cheirar mal, poderá não ser tão agradável sentarem-se e beberem cerveja».

No entanto, também há exemplos como a República Checa, que declarou estado de emergência antes de registar uma única morte por covid-19. O zelo parece ter compensado: foi dos primeiros países europeus a relaxar restrições, logo a 7 de abril.

Os checos puderam passar a dar passeios e fazer desporto sem máscaras, desde que mantenham a distância de segurança. Desde então, os novos casos não ultrapassaram os 150 por dia – muito abaixo do pico, com mais de 300 infeções diárias. Agora, os checos já falam em reabrir museus, restaurantes e até centros comercias, a partir de maio, desde que os novos casos não aumentem.

Entretanto, em meados de abril, as crianças até aos 11 anos voltaram às aulas na Dinamarca, enquanto a Noruega reabriu os infantários. O passo foi polémico: as crianças tendem a não ter sintomas de covid-19, mas podem ser focos de transmissão para pais, professores ou funcionários. O tema tornou-se crucial, com vários países, como a Finlândia ou a Austrália, a preparar o regresso às aulas neste momento.

Dado que a covid-19 também se espalha por partículas, quando se tosse, o facto de as crianças terem menos sintomas poderia torná-las menos passíveis de infetar outros que um adulto – estudos indicam que a tendência para contacto físico próximo entre crianças pode compensar isso.

«Com os testes atualmente focando-se mais naqueles com sintomas de covid-19, pode ser difícil identificar rapidamente o papel completo das crianças na transmissão», avisou Martin Hibberd, professor da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, ao Guardian.

Com uma doença tão recente, a dificuldade é mesmo essa, ter estudos e dados suficientes para decidir políticas públicas de forma informada. O Reino Unido, que foi dos últimos países europeus a impor restrições e agora poderá ter ser dos últimos a levantá-las, vai decidir se reabre ou não, e como, a 7 de maio. Poderá ter de basear-se numas das sondagem mais ambiciosas desta pandemia.

Ao longo da próxima semana, 100 mil pessoas, aleatoriamente escolhidas em 315 localidades em Inglaterra, receberão kits de teste à covid em casa. O objetivo deste estudo, do Imperial College de Londres e da Ipsos, é ter uma imagem mais precisa do alastrar da doença no país. Não é segredo que o número real de casos tende a ser muito superior ao número de registado, em função de fatores como os testes disponibilizados.

«À exceção de uma vacina, testar é a única maneira de sair do isolamento», declarou Ara Arzi, o investigador do Imperial College responsável pelo projeto. Contudo, «o cenário de testagem é como o Faroeste, sem regras, sem padrões e com uma confiabilidade muito variável», considerou, explicando que pretende inaugurar «um programa de teste viável em que o Governo se pode basear».