Holocausto. Os bebés que fintaram os planos de Hitler

Eva, Mark e Hana têm 70 anos, tantos como o tempo que passou desde o fim da Segunda Guerra Mundial. São filhos de um tempo em que muitos bebés judeus foram mortos nas câmaras de gás. Mas sobreviveram para contar a sua história.

Hana Moran sente necessidade de justificar a sua existência todos os dias, para o resto da sua vida. Quando lhe perguntámos como se sentia na pele de sobrevivente, respondeu-nos, repetidamente: “muito agradecida” e “abençoada”. Actualmente com 70 anos, Hana, Mark e Eva estão destinados a ser os últimos de todos os sobreviventes do Holocausto e a sua história (agora contada no livro “Os Bebés de Auschwitz”, ed. Vogais) prolongará a memória da Alemanha nazi. 

Nasceram em Abril de 1945, com poucos dias de diferença. em campos de concentração com condições extremas, onde a morte era o fim mais natural para qualquer judeu. Uma inevitabilidade quase incontornável. Têm tantos anos quantos os que passaram desde o fim da Segunda Guerra Mundial e por um conjunto de circunstâncias várias – sorte? destino? – venceram os planos de Hitler de os apagar da história e da memória.

É por isso que Hana sente a tal necessidade de justificar a sua existência. E fá-lo com a vida dos milhões que foram mortos no Holocausto. “Há tantos sapatos por calçar, daqueles que morreram injustamente…”, diz ao i, deixando transparecer o sentimento de um dever superior de viver uma vida intensa, por si e por todos os que não tiveram a mesma sorte. Se não o fizesse, conta, seria como insultar a mãe, que tanto sofreu para a trazer ao mundo, e todos os americanos que estiveram presentes na libertação do campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, onde a mãe se encontrava no fim do guerra. “Sinto-me honrada – não especial – por ter sobrevivido contra todas as probabilidades.”

Hana – que ainda hoje guarda cicatrizes das infecções que teve nos primeiros dias de vida – regressou com a mãe à Eslováquia depois de ter sido libertada, em 1945, do campo de extermínio judeu na Áustria. Morando actualmente na terra dos libertadores, recorda que deveria ter os seus seis anos quando percebeu que era uma criança diferente das outras: não tinha pai nem outros familiares. E na escola os colegas perguntavam-lhe muitas vezes porque tinha nascido na Alemanha. “A compreensão do que foi o Holocausto surgiu gradualmente, mas mais em concreto aos 12 anos”, esforça-se por ser concreta. Nesse momento percebeu o que se tinha passado com o pai, Tibor, com todos os seus familiares e com milhões de pessoas que foram dizimadas naquele tempo. Às marcas no corpo Hana foi juntando o sentimento de revolta: “Sinto uma dor no coração, ressentimento. Mas não em relação a todos os alemães. Só em relação ao grupo de pessoas que perseguiram os judeus, os ciganos, alguns cristãos e todos aqueles que não pertenciam à raça ariana”, desabafa. Daquilo que observa, o mundo, e a Europa em concreto, não parece ter tirado uma grande lição do que se passou há 70 anos. “Preocupa-me muito que esse ódio racial ainda seja possível nos dias de hoje.”

 

AUSCHWITZ, O INFERNO NA TERRA

“Sind Sie schwanger, fesche Frau?” (“Está grávida, bonitona?”). A pergunta repetia-se directamente a todas as mulheres que compunha a fila de gente sem roupas e com o cabelo rapado à entrada do campo de concentração de Auschwitz. A chegada das mulheres judias ao “inferno na terra” – como as próprias viriam a descrevê-lo – era marcada pelo rigor maquiavélico do Dr. Joseph Mengele, que tinha como missão sinalizar quem estivesse de esperanças num local onde não havia lugar para a esperança. As mulheres que estivessem grávidas eram desviadas para um lado, as restantes seguiriam para o lado oposto; um significava a morte imediata nas câmaras de gás e o outro um breve prolongamento da vida. 

“Impecavelmente vestido, no seu uniforme verde-cinza justo, de divisas reluzentes e colarinho ornado com caveiras”, Mengele, que viria a ser conhecido como o Anjo da Morte, inspeccionava todas as mulheres, nalguns casos apertando-lhes os seios para verificar se tinham leite.

Priska, judia eslovaca e mãe de Hana, estava grávida de dois meses quando chegou a Auschwitz, em Outubro de 1944. “Nein”, respondeu, tal como Anka, mãe de Eva, e Rachel, mãe de Mark. 

Grávidas, totalmente despidas em frente a Mengele, com uma mão a tapar os seios e outra as partes íntimas, negaram estar à espera de bebé. Sem noção disso, deram o primeiro grande passo para a sobrevivência. A sua e a dos seus filhos. Juntar uma gravidez a ser judia era um crime contra Hitler, cujo plano era o extermínio de todos os judeus e a perpetuação da raça ariana. As judias que estivessem grávidas – e não fossem imediatamente para a câmara de gás – eram obrigadas a abortar e as que ultrapassassem os sete meses de gestação e dessem à luz nos campos de concentração tinham de entregar os bebés para eutanásia, ou, pior ainda, para as experiências macabras do Anjo da Morte. 

As três – Priska, Anka e Rachel – nunca se chegaram a conhecer. Nem sabiam da existência umas das outras, apesar de partilharem histórias de vida muito semelhantes. Deram à luz bebés-milagre quando o seu próprio peso correspondia ao de uma criança: tinham pouco mais de 30 quilos e o seu aspecto já não se assemelhava ao de seres humanos, tão esqueléticas estavam. O estado de subnutrição era tal que lhes parecia impossível conseguirem dar à luz os seus bebés e que estes nascessem com saúde.

Antes de chegarem a Auschwitz, as mães dos bebés já tinham experimentado a desumanização nos guetos, onde foram sujeitas a trabalhos forçados. Mas nada que se parecesse com Auschwitz, o mais temido dos campos de extermínio de judeus, onde as opções eram apenas duas: ser imediatamente morto nas câmaras de gás ou ser considerado saudável para trabalhar, e portanto escravizado, caminhando de braços dados com a morte, que acabaria inevitavelmente por chegar. 

“Racionalmente, convenci-me de que a hipótese de sobrevivência naquele inferno era muito pequena”, dizia a mãe de Hana. Anka, a mãe da bebé Eva, socorria-se de uma estratégia mental para suportar a vida nos campos de concentração: “Tive a sorte de nascer com esta personalidade que me tem ajudado durante toda a vida… É optimismo estúpido e puro, mais nada. Independentemente de tudo, dizia “amanhã penso nisso”. […] Tive tanta sorte em não morrer… Podia ter acontecido a qualquer minuto”, disse à jornalista Wendy Holden, autora de “Os Bebés de Auschwitz”.

 

NASCER RODEADO DE MORTE

Pouco depois de terem passado horrores em Auschwitz, as três grávidas (sem terem conhecimento umas das outras) foram transferidas para Freiberg, para uma fábrica alemã de aeronaves. A viagem de comboio até Freiberg foi feita em condições deploráveis – sem espaço, amontoadas em vagões como sardinhas enlatadas, sem asseio (as necessidades fisiológicas eram satisfeitas ali, no mesmo espaço), sem água nem comida. E elas, Priska, Anka e Rachel, grávidas. Quando chegaram ao destino encontravam-se, sobretudo, “delirantes de sede”, a pior de todas as torturas. Os seus corpos iam progressivamente desaparecendo por baixo das roupas – de tal forma que não denunciavam sinais de gravidez – e parecia cada vez mais difícil escapar à solução final de Hitler.

O último destino era o campo de concentração de Mauthausen, na Áustria. Para lá chegar fizeram outra viagem tortuosa, desta feita de 17 dias (pior do que a anterior). Viajaram rodeadas de cadáveres, piolhos e mulheres dementes. Foram várias as que caíram ali mesmo. 

Foi num vagão deste comboio, onde “esperança” parecia uma palavra desconhecida, num cubículo sem espaço sequer para respirar, que Mark nasceu, a 19 de Abril de 1945. Sugeriram à mãe, Rachel, que dissesse que o bebé tinha nascido dia 20, feriado nacional e dia do aniversário de Hitler. Podia ser esse pormenor a salvar-lhe a vida. Apesar de a morte lhes parecer inevitável, a esperança, a tal palavra que parecia desconhecida, ainda não a tinha abandonado completamente. Dez dias depois, a 29, no próprio dia da chegada, nascia Eva. Já Hana tinha nascido a 12 de Abril, ainda em Freiberg, numa altura em que os bombardeamentos dos aliados se intensificaram. Fez a viagem de comboio escondida sob uma manta.

O destino das três mães e dos seus bebés parecia de facto a morte. Mas o cerco aos alemães apertava-se dia após dia, as forças aliadas estavam cada vez mais próximas, e quando por fim chegaram ao último inferno, Mauthausen, milagrosamente – é mesmo esta a palavra – as câmaras de gás já não estavam funcionar. O gás tinha acabado no dia anterior à chegada do comboio onde seguiam Priska, Anka e Rachel e os seus bebés.

No dia 5 de Maio de 1945, os 60 mil sobreviventes do campo foram libertados por tropas americanas. Quando lá chegaram, os soldados depararam-se com um cenário verdadeiramente devastador: de um lado os cadáveres, do outro esqueletos andantes. Mas foi no meio desta cena tétrica que encontraram também três bebés, muito frágeis, a precisar de cuidados médicos. Hana era quem estava pior: encontrava-se gravemente subnutrida, cheia de infecções e infestada por parasitas. Foi salva pelo médico americano LeRoy Petersohn. Já em adulta havia de o procurar e agradecer-lhe pessoalmente.

Influenciada por aquilo que a mãe lhe foi contando, o momento da libertação é um dos que Hana guarda na memória para sempre. Quando os soldados americanos chegaram, a imagem dos carros brancos e dos soldados jovens a rir – “uma coisa bela”, diz-nos – e uma música a tocar ficou para sempre na cabeça de Priska como símbolo da chegada da tão ansiada liberdade.

As três mulheres, que guardavam a esperança de os pais dos seus bebés terem também sobrevivido, haviam de regressar às suas terras. Numa Europa completamente devastada pela guerra, vieram a confrontar-se mais tarde com a dura realidade de que tinham dado à luz bebés órfãos. 

Apesar de terem trilhado o mesmo caminho, de terem nascido com dias de diferença e de serem os três filhos da improbabilidade, só passados 65 anos Eva, Mark e Hana tiveram conhecimento da existência uns dos outros. Descobriram um laço permanente e uma sensação de união como se tivessem saído do mesmo ventre. Hana orgulha-se de dizer que, apesar de tudo o que a guerra lhe roubou, ganhou dois irmãos. E com isso, como nos disse, preencheu um vazio: “Encontrei paz no meu coração.”

Artigo publicado originalmente em julho de 2015