Coronavírus grande mestre

Quando o perigo andava longe, pensávamos que o mal só atingia os outros; agora obriga-nos a ser mais solidários e a abrir os olhos para a miséria do mundo, a pensar que estamos todos no mesmo barco, como se expressou o papa Francisco. O mundo, e em particular a Europa, deve unir-se mais, sob pena de soçobrarmos…

por padre José H. Barros de Oliveira 

O covid-19, para além de perturbar e matar, também dá grandes lições. Eis algumas, por ordem aleatória:

1) Numa civilização do lazer e do prazer, rapidamente o mel se transformou em fel.

2) Quando a morte era tabu, agora aí está ela totalmente exposta e fazendo-nos pensar na fragilidade humana. E não é patológico o pensamento sobre a morte. Montaigne (sec XVI) dizia: "Quem ensinar o homem a morrer, ensiná-lo-á a viver". Agora a lição entra-nos por todos os cantos do nosso ser, faz-nos pensar que somos mortais (estávamos bastante esquecidos!).  A perspetiva da morte ajuda-nos a valorizar mais o que à hora da morte tem realmente importância e a desvalorizar o que à hora da verdade é lixo. Ajuda-nos a distinguir o que é essencial do que é secundário, a distinguir o trigo da palha, a uva da parra, o ouro das escórias; ajuda-nos a distinguir a cabeça do estômago, o coração do sexo.

3) Numa sociedade onde o deus era (e continua a ser) o ouro, o dinheiro ganho à custa por vezes de tanta corrução, agora aí vem uma grave crise económica, mais feroz talvez do que a sanitária.

4) O homem hodierno pensava que era o senhor deste mundo e do outro, que tinha solução para tudo, que tudo dominava, e agora vê-se que tem pés de barro, que 'o rei vai nu'.

5) Quando não tínhamos tempo para nada, na correria louca da vida, sempre com a agenda na mão, agora estivemos confinados aos metros quadrados da casa, sem saber o que fazer do tempo.

6) Quando não tínhamos tempo para a família, agora somos forçados a olhar mais uns para os outros e pelos outros e a treinar-nos a viver em casa, a brincar com os filhos (se os houver – ao menos agora faziam falta!).

7) Quando o perigo andava longe, pensávamos que o mal só atingia os outros; agora obriga-nos a ser mais solidários e a abrir os olhos para a miséria do mundo, a pensar que estamos todos no mesmo barco, como se expressou o papa Francisco. O mundo, e em particular a Europa, deve unir-se mais, sob pena de soçobrarmos todos juntos. Mesmo a ciência deve convergir para encontrar remédio para a pandemia.

8) Quando desprezávamos a mãe Terra, a braços com tanta poluição, ela aproveita-se agora para respirar um pouco melhor e o céu já parece mais límpido e deixa ver as estrelas.

9) Quando vivíamos no meio de tanto ruído dos carros, das fábricas, dos campos de futebol (muitos morrem sem futebol), dos altifalantes das festas, agora o silêncio fez-se ouvir e com ele o canto dos pássaros em primavera.

10) Enquanto estivemos confinados em casa,aprendemos a apreciar quão importante é a liberdade de movimentos, de podermos andar por aí a ver passar a procissão da primavera, ou o sol a brilhar e o mar a chamar; e também pudemos compreender melhor o sofrimento dos presos…

11) Muitas vezes cumprimentávamos ou beijávamos os familiares e amigos rotineiramente, e agora sentimos a necessidade de um beijo ou abraço mais amoroso, sobretudo à hora de maior sofrimento, como na morte de algum familiar. Quando a crise passar, já nem saberemos cumprimentar-nos ou teremos medo de nos contaminarmos, vendo em cada um um potenciar inimigo da nossa saúde.

12) Muitas vezes falamos mal dos médicos ou enfermeiros e agora vêmo-los exaustos, lutando heroicamente para nos salvar.

13) Para os cristãos habituados aos domingos a participar na celebração eucarística, muito mais em tempo pascal, o facto de agora terem de jejuar, essa privação pode aumentar mais a fome de comungar o Senhor Ressuscitado e evitar posteriormente a rotina com que tantas vezes participam na Eucaristia.

14) Sobretudo nas ocasiões de grandes catástrofes, como esta, é inevitável a pergunta: – Onde está Deus?  A resposta levava-nos longe. Mas pode dizer-se que não está ausente, não fugiu. Está na Cruz continuando a sofrer com os que sofrem, a morrer asfixiado… Está presente nos que sofrem e nos que procuram mitigar a dor alheia à custa de tanto sacrifício, mesmo da vida.  Quando o homem é diretamente culpado, como nas guerras, campos de concentração, injustiças gritantes, não batamos as culpas no peito de Deus, mas do homem. Quando a catástrofe não depende diretamente do homem (embora indiretamente possa também ser responsável, como no caso verrtente) fica o mistério da liberdade e da fragilidade humana. Em todo o caso, Deus não é um demiurgo ou um deus ex maquina  que venha resolver todas as situações. Também no sofrimento, que faz parte da vida (basta amar para sofrer), podemos crescer, como faz a Natureza no inverno… Mas chega a Primavera.

15) Finalmente, mas não menos importante, quando andávamos ou andam tantos políticos preocupados com o aborto, a eutanásia (o vírus encarrega-se disso e de que maneira!), os casamentos e adoções gay, as barrigas de aluguer, a 'ideologia de género' e quejandos atentados à vida e à família, nesta 'cultura de morte', agora chega mais este vírus facínora. Entretanto, supõe-se que haja, a nível mundial, cerca de 53 milhões de abortos por ano – 145 mil por dia!, e em Portugal cerca de 16 mil ao ano – 44 por dia (sem contar os clandestinos) e ninguém chora estes santos inocentes, antes os condena à morte ainda no ventre materno… Acrescente-se as vítimas, que podiam ser evitadas mas não são, das guerras (só na Síria cerca de 400.000), do terrorismo, da fome e das doenças (quantas crianças morrem diariamente de miséria…). E os mortos nas estradas (dizem  três milhões ao ano), os mortos pela droga, pelo álcool, pelo tabaco… Choremos os mortos da pandemia, mas também tantas vítimas dos crimes ou dos desmandos humanos.

Enfim, lavemos as mãos, mas lavemos também a alma!

Podíamos ainda acrescentar outras ilações a tirar deste monstro traiçoeiro: dificuldade em gerir a incerteza e o medo do futuro; imposição por parte das autoridades de uma 'cultura do medo' e do policiamento, favorecendo mesmo a delação; tornar os cientistas mais humildes; ter um serviço de saúde melhor e mais bem preparado para tais emergências; investir mais na investigação, sobretudo na área da saúde, e menos no armamento (não se podem disparar mísseis contra os vírus); destruir as armas biológicas e não fazer mais experiências não vá algum vírus saltar fora (como pode ter sido o caso); preocupar-se mais com os idosos (sem os estigmatizar) e os presos e não apenas nesta ocasião; ter um Estado mais interventivo contra tantos atentados ecológicos; saber viver num mundo mais digitalizado; aprender a andar de máscara (já muitos, mormente os políticos, a usavam); aprender a viver sem futebol, etc.

Enfim, é preciso pensar, porque o homem de hoje vendeu ou ao menos alugou a cabeça. Já dizia o salmista: "desolada está a terra porque não há quem pense". Podemos não aprender a lição e, passada a crise, tudo ficar na mesma nesta correria louca para o abismo, distanciados uns dos outros, não dois metros, mas quilómetros, matando-nos uns aos outros e destruindo a Natureza.

Mas não; vamos antes sonhar e construir um Mundo Melhor, que está em dores de parto, como diz S. Paulo, onde Deus também tenha lugar, pois é o melhor Companheiro do homem nas horas boas e mais ainda nas horas más.  E já que esta pandemia (palavra do grego que significa "todo o povo") continua em tempo pascal,  que "todo o povo" cante, apesar de tudo e contra tudo: Aleluia! Aleluia! A natureza continua a vestir-se de verde, os jardins a florir, as andorinhas a chilrear inocentes no espaço, a vida a renascer. Haja Esperança!