O vírus com várias cores

A situação que vivemos é única. A realidade superou a ficção. E tudo muda, da noite para o dia. Literalmente. O ‘normal’ passou a ser aberrante e o impensável passou a ser ‘normal’. E isto também se aplica à trilogia dos temas a evitar numa conversa.

Por Filipa Moreira da Cruz

No país onde vivo há três assuntos tabu: a política, a religião e o dinheiro. Paradoxalmente, os nativos têm opiniões bem formadas acerca dos três e expõem-nas com facilidade nas redes sociais ou em conversas de café, mas raramente em reuniões familiares. Os franceses adoram comentar a atualidade política e criticam todos os partidos: da extrema esquerda de Mélenchon à extrema direita de Le Pen. Pouco tempo depois de ser eleito, o presidente da República é sistematicamente posto à prova, até mesmo pelos que votaram nele. Faz parte do jogo. Perverso e invasivo.

Contrariando outro dos tabus, são muitos os franceses que se julgam doutorados em cristianismo, islamismo e judaísmo. Curioso, num país que se assume como laico. Ou talvez não. A França deve ser o Estado-membro da União Europeia com mais mesquitas e sinagogas. A liberdade religiosa é tão importante que existe mesmo um artigo na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Quanto ao dinheiro… ninguém fala! Não se diz quanto se ganha nem quanto se gasta. Até há pouco tempo, era inapropriado perguntar-se o ordenado na primeira entrevista de trabalho. 

A situação que vivemos é única. A realidade superou a ficção. E tudo muda, da noite para o dia. Literalmente. O ‘normal’ passou a ser aberrante e o impensável passou a ser ‘normal’. E isto também se aplica à trilogia dos temas a evitar numa conversa.

Portugal tem sido apontado como um exemplo na gestão da pandemia. Isto deve-se, em parte, à união de todos os partidos políticos para combater a covid-19, algo que contrasta com o cenário em França e, até mesmo, na vizinha Espanha. São vários os amigos estrangeiros que me dizem que os Portugueses são solidários, unidos e civilizados. Segundo eles, o Governo agiu atempadamente, evitando a catástrofe. Os políticos lusos puseram de lado as divergências para derrotarem juntos o vírus. Talvez não seja exatamente assim, mas quem sou eu para contrariar esta versão romantizada do ‘milagre’ português!

O Ramadão já começou (jejum praticado pelos muçulmanos que dura entre 29 a 30 dias) e será difícil controlar o isolamento social, sobretudo a partir do pôr do sol. Partilhar a refeição com a família e os amigos é o momento mais esperado do dia. Habitualmente, a última oração é realizada em grupo. Impedir que tal aconteça vai ser um desafio quotidiano. A polémica está lançada e não há consenso. Há autarquias que já avisaram que o controlo será ainda mais apertado, enquanto outras mostram-se mais tolerantes. 

A economia está adormecida, mas as despesas dispararam. O rendimento familiar de muitos lares franceses tem-se mostrado elástico perante o aumento do consumo de água, gás e eletricidade. Mas até quando? As idas ao supermercado são frequentes e os preços dos alimentos aumentaram. Fruta, legumes, carne e peixe estão mais caros. As típicas promoções do género ‘pague 1 e leve 2’ escasseiam. Basta comparar a fatura do mesmo sítio antes e depois do confinamento. De nada serve ao Governo insistir que não houve qualquer aumento. A carteira fala mais alto. São cada vez mais as pessoas que não têm condições nem para comer. Reformados, famílias monoparentais, jovens universitários, desempregados fazem fila à porta das instituições francesas que distribuem comida. De repente, falar de dinheiro deixou de ser tabu para passar a ser primordial. Fazem-se contas à vida.

Vida essa que está em suspenso para uns e enterrada para outros. Mas o tempo não para, caprichoso e provocador. As férias da Páscoa terminaram e o 3.º período começou em casa, pela primeira vez! Na pequena escola em frente à praia que os meus filhos frequentam as professoras prepararam uma pasta para cada aluno com um dossier, várias fichas, um livro (a Mathilde está desejosa de ler O rei que não queria reinar!) e dois cadernos. Tudo oferecido. Do 1.º ao 5.º ano quase todo o material é fornecido pelas autarquias. Os encarregados de educação só pagam a cantina e o valor da mesma é calculado todos os anos com base na declaração dos impostos. 

Desde o início do ano letivo, os meus filhos têm acesso à plataforma digital ‘mon école’ que é destinada aos alunos do 1º e do 2º ciclos. Cada um tem o seu código e pode realizar livremente as atividades propostas de acordo com o ano que frequenta. Basta um clique para terem acesso ao jornal júnior, à palavra do dia, à visita virtual de um museu, à viagem por um país no mundo, à descoberta de uma obra de arte. E, obviamente, aos exercícios de francês, problemas e jogos de matemática, pesquisas históricas, experiências científicas e vídeos explicativos. A rotina manteve-se praticamente inalterada. No entanto, as professoras passaram a personalizar, na plataforma, as mensagens destinadas a cada aluno, tendo em conta o trabalho realizado por cada um deles. Ambas têm demonstrado um enorme esforço e dedicação. Para além disso, comunicam com frequência por e-mail onde apresentam as correções das fichas e dão explicações sobre as matérias mais difíceis.

O Stan sempre gostou muito das ciências exatas e a matemática é a sua paixão. A Mathilde sai a mim. Gosta muito de escrever, tem um espírito rebelde e criativo. Ou isso pensava eu! Desde que, no ano passado, começou com o ‘método de Singapura’ passou a preferir a matemática, como o irmão. Não me admira! Com esse método até eu deixei de ter medo dessa disciplina. Ainda assim, a minha filha continua a inventar histórias e a escrever no diário que a tia Inês lhe ofereceu no Natal. A sua professora envia, todas as semanas, o ‘jornal da quarentena’ onde partilha os trabalhos realizados pelos alunos (à distância) e as notícias da turma. A Mathilde participa assiduamente com prazer. Inventou a história do ‘vírus com várias coroas’, fez um mini livro com origami, realizou um vídeo na cozinha a fazer madalenas… Tudo é pretexto para passar o tempo e esquecer a razão pela qual somos forçados a ficar em casa. Ou não tivesse ela dito um dia que «deveríamos morrer todos muito velhinhos, durante o sono, sem sofrer».