Uma fé mais ardente do que as chamas da fogueira

Nestas últimas semanas, uma das vantagens evidentes do confinamento tem sido a possibilidade de ver televisão – algo que, de há uns anos para cá, vinha sendo praticamente impossível. Não me refiro a ligar o aparelho e a ver por ver, ou simplesmente fazer zapping, mas sim a ver bons programas ou bons filmes. É…

Nestas últimas semanas, uma das vantagens evidentes do confinamento tem sido a possibilidade de ver televisão – algo que, de há uns anos para cá, vinha sendo praticamente impossível. Não me refiro a ligar o aparelho e a ver por ver, ou simplesmente fazer zapping, mas sim a ver bons programas ou bons filmes. É que a televisão tanto pode ser um instrumento de embrutecimento sem igual como um meio de aprendizagem precioso.

Por estes dias tive, por exemplo, a oportunidade de ver Silêncio, de Martin Scorsese, que passou na RTP1 por alturas da Páscoa. Trata-se de um filme impressionante – com muita violência à mistura, à boa maneira do realizador americano – que retrata os suplícios sofridos pelos cristãos no Japão do século XVII, depois de em 1639-1640 o governo Tokugawa ter instituído a política do ‘país proibido’.

Ao mesmo tempo fascinado pela fé inquebrantável daquelas pessoas humildes e horrorizado pelas atrocidades contra elas cometidas pelas autoridades japonesas daquela época, fui à procura de mais alguma informação sobre o assunto no livro de Charles Boxer de 1978 A Igreja e a Expansão Ibérica (1440-1770) (edições 70).

Boxer fala numa conversão superficial dos autóctones ao cristianismo – que em muitos casos se resumia a três dias de ‘catecismo’. Ainda assim, reconhece «a extraordinária persistência do cristianismo católico, uma vez firmemente implantado, mesmo que de uma forma muito simples, ou então sob formas adulteradas ou sincréticas». É isso que nos mostra o filme de Scorsese: aldeãos que, mais do que a Deus, adoram pequenas imagens de Cristo na cruz, ignorando as subtilezas da teologia, mas talvez por isso mesmo dando mostras de uma fé intensa, despojada, obstinada, à prova de tudo.

«Protestantes ingleses e holandeses», conta-nos o historiador britânico, «testemunhas oculares da sádica perseguição aos convertidos católicos nos primeiros tempos do governo Tokugawa no Japão, ficavam espantados com a firmeza da gente simples perante a fogueira. Entre estes, incluíam-se crianças de cinco e seis anos queimadas nos braços de suas mães, clamando ‘Jesus, recebei as suas almas’».

Hoje parece-nos impensável queimar crianças por causa da religião. A verdade é que o governo japonês via os cristãos como uma ameaça latente, uma ‘quinta coluna’ de infiltrados que em caso de invasão de uma potência (católica) ibérica se juntaria aos senhores feudais descontentes para combater contra o seu próprio país.

Mas a principal questão que o filme de Scorsese (baseado no romance homónimo de Shusaku Endo) coloca, de forma inquietante, é se as preces dos supliciados foram ou não ouvidas. É impossível o espectador não se interrogar se aquele sofrimento atroz de tantos e tantos cristão que recusaram renunciar à sua fé serviu para alguma coisa. O que encontraram do outro lado? Não há maneira de sabê-lo. Cada um terá de procurar a resposta no silêncio de si mesmo.