Pandemia. Pesadelo no hemisfério sul

Enquanto o inverno se aproxima, a pandemia acelera no Brasil. A sul do Sahara, a fome e os abusos aumentam.

Pandemia. Pesadelo no hemisfério sul

A África subsaariana e a América Latina, até agora relativamente poupadas, estão na mira da pandemia. O populoso Brasil está na linha da frente, com as mortes e infeções registadas por covid-19 a disparar, e a subir rapidamente nas tabelas de países mais afetados: é o sexto com mais mortes. A Organização Mundial de Saúde (OMS), que já falava no continente africano como o próximo epicentro da pandemia, avisou esta semana que só no primeiro ano o número de mortes em África pode chegar às 190 mil, com até 44 milhões de infeções por covid-19. Pode ser a ponta do iceberg: os estragos socioeconómicos serão enormes, sobretudo em África, onde muitos já se debatiam pelo acesso à saúde ou alimentação.

Importa lembrar que o inverno está a chegar ao hemisfério sul: não se sabe exatamente quais serão os efeitos para a doença, mas de certeza que as temperaturas mais frias não facilitarão, nem que seja pela chegada dos surtos sazonais de gripe. O alastrar do novo coronavírus deverá agravar-se sobretudo nas regiões «onde há uma sazonalidade marcada, que faça as pessoas juntarem-se em espaços fechados», para escapar do frio, considera Paul Ewald, professor da Universidade de Louisville, perito em doenças infecciosas, ao SOL. Ainda assim, «há muito menos população no hemisfério sul nas latitudes temperadas que correspondem às áreas mais devastadas no hemisfério norte», lembra o investigador.

Tanto a América Latina como a África subsaariana têm densidades populacionais mais baixas do que a Europa, por exemplo. «As populações mais pequenas deverão resultar em menos mortes e sofrimento», afirma o investigador. A notória exceção são megacidades como Kinshasa, na RD Congo, ou São Paulo e o Rio de Janeiro – que estão já entre as mais afetadas pela pandemia no Brasil.

Contudo, no país mais afetado da América Latina, a maior tragédia vive-se no estado tropical do Amazonas, no norte do país, onde as populações, boa parte de origem indígena, se aglomeram em cidades à beira dos rios – o tráfego fluvial é apontado como a principal via de alastramento da doença na região. Só na capital do estado, Manaus, chegaram a haver 140 enterros por dia. As funerárias já entraram em colapso, forçando as autoridades a abrir valas comuns e chocando o mundo.

 «Todo dia eu vejo mortes de pessoas que conheço», contou o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, em lágrimas, esta sexta-feira, à BBC Brasil. Alguns acusam o perfeito de chorar lágrimas de crocodilo, por continuar a recusar implementar medidas mais estritas de isolamento social, apesar da escala da tragédia. Neto garantiu que o seu maior receio é que as pessoas se comecem a sentir frustradas com os impactos das medidas contra a covid-19. Alguém «joga uma pedra em alguém, começa um tiroteio com bala de borracha que pode cegar alguém, começa a reação das pessoas, que vivem uma situação de desespero», teme Neto. «Algo que termina dando em tiro, dando em morte».
A verdade é que, nas últimas décadas, norte e o nordeste têm estado entre as regiões mais violentas no Brasil, que já tem uma elevada taxa de homicídio. Ainda assim, o isolamento social continua a ser considerada a medida mais eficaz contra o surto de coronavírus.

Brutalidade

Na África subsaariana, a violenta imposição das medidas de isolamento social, em países como a Nigéria, Quénia, África do Sul ou Uganda, ganha proporções cada vez mais brutais. 

Na África do Sul, considerado um dos países com maiores abusos policiais na região, a expectativa é de que até julho estejam nas ruas 73 mil tropas, além das forças de segurança, segundo o South African. «Há uma cultura tóxica de confinamento em alguns países. Na África do Sul, a ONU recebeu relatos da polícia usar balas de borracha, gás lacrimogéneo, canhões de água e chicotes para impor o isolamento social, especialmente em bairros pobres», lamentou Georgette Gagnon, do gabinete da alta comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet. 
As queixas contra agentes sul-africanos incluem homicídio, corrupção e até uma violação. Se as populações já estão revoltadas, é certo que a tensão irá agravar-se com a crescente escassez de alimentos, por todo o continente.

Fome e miséria

«Nós só queríamos chamar a atenção do vereador para algo muito importante para nós», contou Busungani Sithole. Mais do que importante, fundamental: este morador de Booysens, um bairro de lata em Joanesburgo, protestava pela falta de comida, no final de abril, quando começaram a chover balas de borracha. «Não é como se estivéssemos a causar o caos», assegurou Sithole ao Mail and Guardian. Muitos dos seus vizinhos já se veem obrigados a vasculhar contentores de lixo, à procura de algo que comer. «Eles começaram a disparar aleatoriamente contra nós. Foi aí que fui atingido, aqui», relatou Thembelani Zwana, um líder comunitário de Booysens, apontando para um ferimento no rosto, perigosamente perto do olho. Zwana e outros estão a recolher os dados dos feridos para apresentar queixas crime: esta quinta-feira estavam perto das 50.

O cenário não é muito diferente noutros países. Aliás, numa sondagem Centro de Prevenção e Controlo de Doenças de África, realizada em mais de 20 países do continente, mais dois terços dos inquiridos asseguravam que ficariam sem água nem comida no caso de um isolamento estrito durante 14 dias. «A proliferação de protestos pacíficos, exigindo apoio dos Governos, é prova da pressão que muitas pessoas já estão», lê-se no relatório.

Voar às escuras

Perante uma pandemia como esta, o conhecimento é poder. E os dados salvam vidas. Algo que falta em boa parte da África subsaariana, como em Kano, no norte da Nigéria, onde desde abril os coveiros não têm mãos a medir. Mas não sabem bem porquê. «Nunca vimos isto, desde o grande surto de cólera de que os nossos pais nos falam. E isso foi há 60 anos», referiu um dos coveiros, Ali, à BBC. A suspeita da causa de todas aquelas mortes, nos tempos que vivemos, é óbvia. Contudo, ninguém faz ideia do que se passa, porque ninguém fez testes: poderá ser covid-19 ou, talvez, ou outro tipo de doenças. «A contagem dos mortos é alarmante. Mas é provavelmente devido à redução de instituições de saúde disponível», disse Nagoma Sadiq, um médico local, à televisão britânica.

Por agora, o número de caos de covid-19 registados no continente já ultrapassou os 50 mil. Mas muitas mais pessoas poderão estar infetadas, sem o saberem, enquanto são obrigadas a sair à rua, tentando subsistir.