Afeganistão. Nascidos entre tiros e morte

‘Eles atravessaram os portões diretamente para a ala da maternidade’, conta ao SOL  uma médica da MSF.

Para cada vez mais pessoas, um atentado em Cabul é só mais um atentado em Cabul: a guerra arrasta-se no Afeganistão há quase duas décadas. Mas se há atrocidades que abalam a apatia, o ataque à maternidade de Dashti-e-Barchi é uma delas. Grávidas, profissionais de saúde e mães com os seus bebés foram massacrados por homens armados. Atiraram granadas e abriram fogo de metralhadora, na terça-feira de manhã, em pleno Ramadão, assassinando pelo menos 24 pessoas, incluindo dois recém-nascidos.

«Eles atravessaram os portões diretamente para a ala da maternidade», conta ao SOL Isabelle Mouniaman, vice-diretora de operações dos Médicos sem Fronteiras (MSF) no Afeganistão, que gerem a maternidade de Dashti-e-Barchi, um bairro maioritariamente xiita da capital. «Não sabemos porquê. Não sabemos por que atacaram mulheres, miúdos, bebés», lamenta. «Certamente, é a primeira vez que mulheres e crianças são visadas desta maneira, num ataque a um hospital no Afeganistão».

Durante quase quatro horas, pelo menos três terroristas, mascarados de polícias, entrincheiraram-se no edifício, cercados pelas forças de segurança. Disparavam indiscriminadamente no interior, contra quem iam encontrando.

«Felizmente, foi dado o alarme no momento em que entraram. A maioria dos funcionários conseguiu esconder-se algures no hospital», explica Mouniaman, que tinha a sua equipa nas instalações. Perdeu pelo menos uma colega, uma parteira afegã, estando o total final de mortos ainda por contabilizar. Outros meteram-se debaixo de camas, trancaram-se em salas ou refugiaram-se em armários.

Entre o pânico e a morte, houve praticamente um milagre: uma mulher deu à luz o seu filho
em pleno tiroteio. Ambos estão bem e a ser cuidados. «A maior parte da nossa equipa está segura e viva», garante a dirigente da MSF. «Os nossos colegas afegãos regressaram a casa, os médicos internacionais estão num sítio seguro», a receber apoio psicológico, explica Mouniaman. «Estão muito, muito chocados, profundamente tristes».

Por vezes, a sua voz quebra ao telefone. «É difícil para todos. É difícil para eles, para os funcionários do hospital, para
a população de Dashti-e-Barchi, que perderam membros das suas famílias», desabafa.

As imagens mostram o impensável. Soldados das forças especiais afegãs, fortemente armados,
de capacete e colete à prova de bala, a carregar recém-nascidos nos braços, sujos de sangue. Uma mãe foi encontrada morta no chão, ainda agarrada ao seu filho – o bebé sobreviveu e está nos cuidados intensivos, avançou a Reuters. 

Entre as vítimas mortais está Omid, um bebé que mal abriu os olhos. Omid, ou esperança, na língua dari que falam os hazaras, a minoria xiita do Afeganistão. «Esperança por um futuro melhor, esperança por um Afeganistão melhor», contou a sua avó, Zahra Muhammadi, entre choro e gritos, à agência norte-americana.

Quando Zahra viu os atiradores a disparar sobre o berço do neto, caiu redonda no chão, inconsciente. Talvez seja o que a salvou. Tinha feito uma viagem de três horas até Cabul, vinda da província de Bamiyan, ansiosa por conhecer Omid. Há sete anos que a sua nora tentava ter um filho, queriam que tivesse os melhores cuidados possíveis. Acabaram por passar menos de quatro horas com a criança.

Pelo menos 19 recém-nascidos, boa parte agora órfãos de mãe, reconhecíveis pelas pulseiras nos seus pequenos pulsos, foram resgatados e levados para outros hospitais. Ao longo dos dias seguintes, foram sendo recolhidos pelas suas famílias, um por um.

No meio do caos, chegou a haver brigas e murros entre a multidão, desesperada por informação, lê-se no New York Times. A pandemia de coronavírus não ajuda nada. Já há casos em Cabul e nem todos podem visitar os seus
entes queridos no hospital.

«Infelizmente, o Afeganistão é um país em guerra. As pessoas estão a lidar com a perda de familiares, em ataques ou devido a bombistas suicidas, todos os dias», lembra Mouniaman. «Mas a magnitude do que se passou em Dashti-e-Barchi foi uma total surpresa, inesperadamente horrífica».

Até esta sexta-feira, nenhuma fação afegã tinha reivindicado a atrocidade, fossem os talibãs, os seus rivais do Estado Islâmico, ou um dos muitos senhores da guerra. No entanto, o ataque à maternidade – no mesmo dia em
que um bombista suicida do Daesh matou pelo menos 32 pessoas num funeral, em Nangahar, no leste do país – estilhaçou o frágil cessar-fogo em vigor. O Governo afegão já anunciou o recomeço das operações contra os talibãs, que viram a decisão como uma «declaração de guerra».

Morrer onde se nascia
Agora, a maternidade de Dashti-e-Barchi está desolada, marcada por explosões e crivada de balas. Nem sempre foi assim. As suas 55 camas costumavam estar sempre ocupadas. Nas instalações há uma sala de operações, para as cesarianas, uma ala de neonatalidade com duas dezenas de camas e outra para recém-nascidos com baixo peso, onde seguiam o método mãe-canguru.

«Queremos que os bebés estejam mesmo pele com pele com a mãe, para que ganhem peso e sintam conforto», conta Mouniaman. A sua voz fica mais forte quando fala do assunto, entusiasmada.

«Na nossa equipa internacional temos médicos, enfermeiros, ginecologistas, anestesistas, pediatras e parteiras a trabalhar lá. E a equipa afegã é composta por profissionais muito capazes», garante a médica, orgulhosa, recordando que ajudaram a dar à luz 5401  só este ano. Contudo, após a tragédia, muitos dos seus profissionais de saúde receiam voltar ao trabalho.

«Ontem à noite não consegui dormir», admitiu Masouma Qurbanzada, uma parteira que assistiu ao ataque. «A minha família tem-me dito para parar de trabalhar no hospital, que nada vale a minha vida. Mas eu disse-lhes: ‘Não, não vou parar de trabalhar como profissional de saúde’», contou à Reuters.

Os próprios médicos da MSF não sabem o que o futuro lhes reserva. Agora, a prioridade é mantê-los seguros, apoiar os atingidos no ataque e aqueles que temem pelos seus colegas e amigos. «Sair deste choque, que pode
durar dias, semanas, não sei. Mas vai durar», explica Mouniaman. Depois, toda a sua atividade poderá ter se ser repensada.

«A maneira como os ataques aconteceram… Estamos a questionar-nos quem foi o alvo. Era a maternidade em si,
onde tens apenas mulheres e crianças, ou foi por ser gerida por uma ONG internacional? Ainda estamos a tentar perceber», diz a dirigente da MSF. A sua organização atua no Afeganistão desde os anos 80. O único interregno foi entre 2004 e 2009, depois de cinco dos seus profissionais serem assassinados na província de Badghis.

Discriminação e machismo

A maternidade de Dashti-e-Barchi «era um sítio muito animado», conta Mouniaman. Agora trabalha a partir do quartel-general da MSF, em Paris, mas recorda-se bem dos seus tempos no Afeganistão, as visitas a Cabul. De ver as mães, pais e avós contentes por os ter na maternidade, sempre bem recebidos pela comunidade.

«Lembro-me de ir e vir do hospital, na altura podíamos andar na rua, ir aos mercados. Havia muitas cores, miúdos por todo o lado», descreve. «É muito recompensador quando uma mãe consegue dar à luz de forma segura, há uma grande felicidade», garante a médica. «Hoje, não é o mesmo mundo. Há tristeza».

Não que dantes a vida fosse fácil em Dashti-e-Barchi, populado sobretudo por hazaras, uma das minorias historicamente mais discriminadas no Afeganistão. Há muito que são alvo de ameaças e ataques de vários grupos – o suspeito mais provável do massacre na maternidade é a filiais local do Daesh, o Estado Islâmico de Khorasan, que tem visado hazaras.

Além disso, «as mulheres no Afeganistão são sempre as mais excluídas nos cuidados de saúde», refere Mouniaman. Para as 1,5 milhões de pessoas que vivem no oeste de Cabul, «há um grande buraco na cobertura de saúde desde o ataque à maternidade», lamenta a dirigente da MSF. «Não sabemos quando voltaremos à atividade. Para todas as mulheres que costumavam ter o parto num sítio seguro, num hospital, com material, medicamentos gratuitos e profissionais capazes, é uma tragédia dentro da tragédia».

Guerra sem fim
O Estado Islâmico de Khorasan, apontado por Washington como responsável pelo ataque à maternidade, tem todo o interesse em destabilizar as negociações para a retirada das tropas norte-americanas, nas quais nem o Presidente Ashraf Ghani nem os talibãs se mostram particularmente empenhados.

Por um lado, o Governo afegão não ficou nada satisfeito ao ser excluído do processo – os talibãs recusaram negociar com Ghani, apelidando-o de fantoche e exigindo falar diretamente com Washington – e teme ser engolido pelos insurgentes, mal os Estados Unidos retirem. Por outro, os talibãs aceleraram os seus atentados contra alvos afegãos nos últimos meses, ao mesmo tempo que evitam atingir forças internacionais.

Não espanta que Cabul tenha desmentido Washington, apontando o dedo aos talibãs. «Os ataques dos últimos dois meses mostram-nos, e ao mundo, que os talibãs e os seus financiadores não querem, e não queriam, alcançar a paz», tweetou Hamdullah Mohib, conselheiro de segurança nacional do Governo afegão.

Os talibãs não gostaram: lançaram um bombista suicida contra uma base militar afegã, em Gardez, no leste do país, esta quinta-feira. Foi o seu primeiro ataque num centro urbano desde o cessar-fogo, assinado em fevereiro. O dispositivo rebentou demasiado cedo, deixando para trás o habitual rasto de destruição. Entre os escombros estavam pelo menos um soldado e cinco civis mortos.

«Nós estamos em vantagem na guerra, não estamos cansados da guerra e estamos prontos», garantiu um porta-voz talibã a uma rádio local, citado pelo Guardian. Quem está cansado são sobretudo os civis afegãos, enquanto o mundo olha para o lado.

«Infelizmente, não creio que seja só com o Afeganistão», diz Mouniaman. «Há muitos países no mundo que não têm lugar nas primeiras páginas dos jornais europeus», considera a dirigente dos Médicos sem Fronteiras.