Coabitação demasiado perfeita

Socialistas e sociais-democratas nem queriam acreditar no que ouviam: Costa a aplaudir a reeleição de Marcelo e Marcelo a projetar profícuos anos de Governo a Costa. No PSD já se admite uma alternativa presidencial de direita e a esquerda do PS fala na possibilidade de votar em Marisa.

O timing escolhido por António Costa para apoiar a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa apanhou muitos socialistas de surpresa. Numa visita conjunta à Autoeuropa, o primeiro-ministro deu como certa a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa e colocou as presidenciais na agenda política numa altura em que o país está ainda concentrado na pandemia e na retoma da atividade económica.

O PS ainda não discutiu internamente as eleições presidenciais, que se realizam no início do próximo ano, mas, depois de ouvirem António Costa, os socialistas já dão como praticamente certo o apoio ao atual Presidente da República . «O desejo que tenho é que daqui a um ano e meio estejam todos nas mesmas funções. O Presidente da República e o primeiro-ministro», diz ao SOL João Soares. 

A possibilidade de apoiar Marcelo não é estranha ao PS. Ferro Rodrigues e Jorge Coelho, por exemplo, já tinham admitido votar no atual Presidente. O ministro Augusto Santos Silva, numa entrevista recente ao JN, defendeu que o PS não pode deixar de ter em conta que «as personalidades do Presidente da República e do primeiro-ministro combinaram harmoniosamente» e «as coisas correram otimamente bem».

A ideia de apoiar um candidato de centro-direita está, porém, longe de ser pacífica dentro do PS. Alguns socialistas lamentam que o partido não tenha sido ouvido e consideram que o PS tem pouco a ganhar em apoiar Marcelo. «Não vou votar Marcelo. Não vejo qual é a vantagem para o PS a seguir às eleições», diz ao SOL um deputado socialista. Há quem compare a situação com as presidenciais de 1991, em que Cavaco Silva decidiu apoiar Mário Soares. OPSD apoiou a reeleição do fundador do PS, mas no segundo mandato não podiam ter sido maiores as divergências entre Belém e o Governo cavaquista.

Alguns setores do PS insistem na ideia de que o partido deve apresentar um candidato próprio. Francisco Assis e Ana Gomes querem debater as presidenciais internamente em defesa de um candidato da área socialista.

«Não nos podemos esquecer que Marcelo foi líder do PSD. Não é pelo facto de a coabitação estar a correr bem que se justifica o apoio do PS», diz ao SOL Daniel Adrião, que pertence à Comissão Política Nacional. O socialista defende que o partido deve «discutir internamente» as presidenciais e a possibilidade de apoiar um candidato próprio. «É preciso saber se há personalidades que se identifiquem com o património ideológico e civilizacional do Partido Socialista disponíveis para protagonizar uma candidatura em nome desses valores», afirma.

O ex-deputado do PS Ricardo Gonçalves também considera que esta postura «coloca em causa a democracia interna» no PS e que a quase unanimidade à volta de Marcelo Rebelo de Sousa só favorece candidaturas como a de André Ventura.

Caso apoie Marcelo, será a primeira vez que o PS apoia um candidato que não surge da área socialista. Nas últimas eleições, António Costa decidiu dar liberdade de voto aos militantes divididos entre Maria de Belém e Sampaio da Nóvoa.

Costa irrita esquerda
O congresso do PS estava previsto para este mês de maio, mas foi adiado por causa da pandemia. O secretário-geral adjunto do PS, José Luís Carneiro, disse esta sexta-feira que «há um tempo oportuno para essas questões». Ou seja, o PS não abre ainda o jogo sobre quando e como tenciona discutir as eleições presidenciais.

À esquerda do PS já não há muitas dúvidas de que António Costa está a preparar-se para apoiar um candidato de direita. «Como se não fosse suficientemente lamentável o PS apoiar o candidato da direita nas eleições, o primeiro-ministro acha que é adequado anunciar, numa visita oficial conjunta, futuras visitas oficiais conjuntas com um Presidente ainda não reeleito», escreveu, nas redes sociais, o eurodeputado do Bloco de Esquerda José Gusmão. 
O ex-ministro socialista Paulo Pedroso também considerou que «era difícil ser mais deslocada a sua declaração implícita de apoio à candidatura» de Marcelo.

António Costa escolheu o momento em que o Governo atravessava um momento delicado para declarar como certa a reeleição do atual Presidente da República. Numa visita conjunta à Autoeuropa, o primeiro-ministro prometeu voltar no próximo ano com Marcelo. O Presidente da República aproveitou para dar razão a Costa e tirar o tapete a Mário Centeno na polémica transferência de 850 milhões de euros para o Novo Banco. «Temos um espírito de equipa que ninguém vai quebrar. Cá estaremos este ano e nos próximos», disse Marcelo.

A sete meses das eleições presidenciais cresce a ideia de que o espaço do centro será ocupado por Marcelo Rebelo de Sousa. Ana Gomes continua a descartar uma candidatura por falta de apoios dentro do PS. A candidatura mais forte na área da esquerda pode mesmo ser a de Marisa Matias. A eurodeputada eleita pelo Bloco de Esquerda candidatou-se nas últimas presidenciais e teve mais de 10% dos votos. Se o PS apoiar Marcelo pode crescer com os votos dos socialistas descontentes.

PSD deve discutir presidenciais
O PSD também não ficou indiferente à jogada política do primeiro-ministro. Rui Rio dificilmente deixará de apoiar Marcelo, mas foi confrontado com uma situação insólita: o candidato do centro-direita foi lançado pelo líder do PS. Ao SOL, Luís Filipe Menezes, ex-presidente do PSD, admite que «politicamente é um embaraço para o PSD ir a reboque do PS». 

Menezes admite mesmo que o PSD devia discutir se apoiar Marcelo é a melhor solução. «Isto cria um embaraço ao maior partido da oposição. É um assunto que merece ser discutido para perceber se este Presidente serve um conjunto de questões relacionadas com o futuro». 

OCDS também não gostou de ver Marcelo e Costa a colocarem as presidenciais na agenda política no momento em que o país devia estar concentrado na discussão sobre o regresso à normalidade por causa da pandemia. Francisco Rodrigues dos Santos lamentou que «alguns políticos» estejam mais «empenhados em viver num país de faz de conta» do que em procurar soluções para a crise.