Mais um crime horrendo

O caso da menina assassinada pelo pai em Atouguia da Baleia é mais um sinal de que a sociedade está doente. 

O caso da menina assassinada pelo pai em Atouguia da Baleia é mais um sinal de que a sociedade está doente. 
Nos últimos tempos, os crimes violentos com certas características comuns – impiedade, profanação de cadáver e desprezo pela sociedade – têm-se repetido com uma regularidade impressionante.
São muitos casos em pouco tempo: a jovem que matou e queimou a mãe adotiva, a mulher que matou o marido e o abandonou no campo, as duas raparigas que assassinaram e esquartejaram um jovem engenheiro, agora o pai que espancou a filha, a deixou em agonia e se desfez do seu corpo no mato.

Como o leitor José Alberto Fial, médico, me fez notar, neste caso de Atouguia da Baleia não houve apenas um crime – houve três, qual deles o mais hediondo.
Primeiro, não foi um pai que, num momento de desvario, agrediu uma filha pequena com violência, provocando-lhe inadvertidamente a morte. Não: num caso destes, o homem cai necessariamente em si no momento seguinte, chama por socorro, pede ajuda, tenta reanimar a menina, corre com ela para o hospital. 
Ora, o homem não fez nada disto. Depois de a espancar, deixou-a num sofá em agonia. E quando a viu morta, 13 horas depois, pegou no corpo, meteu-o na bagageira do carro e foi abandoná-lo num pinhal. 
E isto mostra que, mesmo não tendo a morte sido planeada, o seu autor também não fez nada para a evitar. Assim, se não houve premeditação, houve um dolo criminoso.

Depois seguiu-se outro crime: o desprezo pelo corpo da criança. Há um respeito que todos temos pelos mortos. Um respeito perante a morte. Ora, desprezar o corpo de um filho a ponto de o atirar como se atira entulho para um baldio é repugnante. Abandoná-lo ao ar livre, à mercê da intempérie, capaz de ser comido pelos animais. Como é possível? 
Finalmente, existe o desprezo pela sociedade. Ver pessoas a solidarizarem-se com ele, a tentarem ajudá-lo a encontrar a filha – e ele ser capaz de se manter impassível, de as deixar procurar à toa um corpo que sabe que não poderão encontrar vivo, de ir ao café beber uma cerveja enquanto aqueles que não são nada à menina a procuram. É medonho.
Portanto, não foi um crime – foram três.
Verberamos muitas vezes os grandes criminosos da História, como Hitler ou Estaline. Mas o que poderia fazer um monstro destes se se visse com o poder? De que atrocidades seria capaz alguém que mata um filho, que abandona o seu corpo ao relento, que goza com as pessoas que o querem ajudar? 

A sociedade está doente. Mas julgo que a doença, pelo menos numa das suas causas, é fácil de diagnosticar: reside na desagregação da família. Tenho chamado constantemente a atenção para este aspeto: o desmantelamento da família tradicional, que se verificou no Ocidente, foi um facto da maior gravidade. 
Na verdade, em todos estes crimes que referimos há um elemento comum: famílias desfeitas. 
Num caso foi a filha desprezada pela mãe natural que acabou por despejar as suas frustrações contra a mãe adotiva.
Noutro caso foi a mulher que matou o marido para lhe herdar os bens e fazer vida com o amante.
Noutro ainda foram duas raparigas que viviam uma relação doentia e desenvolveram sentimentos criminosos contra um jovem que se interessou por uma delas.
E agora foi pior: um pai que mata uma filha num ambiente onde se cruzam frutos de três relacionamentos: a pequena Valentina, produto de uma relação fortuita do homem, o filho da madrasta, e duas crianças que este casal tinha em comum.

Tudo isto é muito confuso, gera um caldeirão de sentimentos desencontrados. E provocou uma monstruosidade: o assassínio da menina que estava ali ‘a mais’. 
Desgraçadamente, olhando para os factos, somos levados a pensar que a criança estava mesmo ‘a mais’ no mundo. Se o pai se desfez dela, a mãe também não a protegeu como se calhar seria necessário. Sabendo que ela já tinha fugido de casa do pai, por que a enviou de novo para lá? Por que não ficou com ela neste tempo de confinamento? Por que a deixou ir para uma casa onde já havia três crianças e a confusão seria grande?
A falta de computador para acompanhar as aulas não explica tudo…
Aquela desgraçada criança tinha uma triste sina: a mãe ‘despachou-a’ para casa do pai e da madrasta, o pai mandou-a para o outro mundo. 

Neste caso, como noutros, condenar os criminosos não resolve nada. Enquanto o problema da família não for assumido pelos governos, enquanto a sociedade promover as relações fugidias, os divórcios, as separações, enquanto o casamento não for encarado com responsabilidade, como um compromisso sério que não é para quebrar na primeira oportunidade, enquanto isto não acontecer estas monstruosidades vão continuar a surgir. 
É preciso perceber que a célula-base da sociedade não é o indivíduo – é a família. A família é que lhe dá o ser, o alimenta, o protege e o educa nos primeiros anos de existência, promovendo em primeira instância a sua integração social, e, ao longo da vida, enquadrando-o e dando-lhe apoio. 
Sem famílias estáveis, não há nações saudáveis.