Orgulho e Preconceito

Não deveria o Ocidente procurar no modelo chinês algo que seja útil para corrigir as disfunções gritantes do nosso modelo?

Os portugueses chegaram à China em 1516. Trezentos anos depois, a China continuava fechada ao Ocidente, no seu recolhimento milenar. Depois foi a intromissão brutal dos europeus em território chinês. São factos.

A História mostra que só um equilíbrio de poder Oriente/Ocidente poderá vencer a tentação proselitista que o Ocidente teve sempre. Uma presença externa de todas as nações, como a China, está hoje a manifestar-se, apesar do seu regime político, que evoluirá se não se sentir ameaçado. Afirmação internacional prudente, pacífica e mutuamente enriquecedora, fomentando o interesse recíproco, trocando bens e conhecimento, comprando, não rapinando nem impondo a tiro. Sem a imposição ao ‘outro’ de modos de viver próprios, que ainda caracteriza as hegemonias ocidentais.

Teresa de Sousa, amiga que prezo, manifestando o que nela é um estranho desconhecimento da História e uma reprodução surpreendentemente da ignorância geral sobre a civilização chinesa, assinou um texto no Público que por ser escrito por ela é revelador extremo de um injustificado orgulho e de um lamentável preconceito.

Afirmou: «A China tem um grande problema: não percebe as democracias».

Ora, não é estranho que não lhe tenha ocorrido a pergunta inversa: e as democracias percebem a China?

Respondo: na verdade, as democracias não querem compreender a China. Ao invés, esta tem-se preocupado em estudar as democracias, importando delas o que entende ser determinante para o seu projeto de ‘rejuvenescimento’. Não chegaria um SOL inteiro para enumerar evidências disso. Cito apenas a proclamação de Deng Xiaoping, logo que se viram libertados do monstro comunista: «Importaremos do Ocidente tudo o que for bom para a China». Ou, numa metáfora expressiva: «Não interessa a cor do gato, desde que apanhe ratos».

Depois do republicanismo, do nacionalismo, do fascismo, do comunismo – experiências políticas que se sucederam na China num breve período de tempo como em nenhum outro país europeu – a última importação foi o capitalismo. E continua na procura de um novo modelo, mas no seu ritmo e não no que o Ocidente lhe quer impor.

Tendo isto em conta, não deveria o Ocidente olhar para o modelo chinês na procura de algo que pudesse ser útil para corrigir as disfunções gritantes do nosso modelo?

No seu artigo, Teresa de Sousa visava o modo como a China está a aparecer no Ocidente e a relacionar-se com o mundo – um direito que seguramente ela não contestará. Mas não deveria também ter-se interrogado sobre o modo como o Ocidente irrompeu na China? Como as anteriores hegemonias europeias se impuseram na China e os EUA continuam a impor-se no mundo? Mas também sobre isso não tenho nada a ensinar à minha Amiga Teresa de Sousa.

Prometendo não voltar a maçar os leitores do SOL com estas minhas ‘cousas da China’, termino com uma história chinesa antiga.

Uns passarinhos nascidos num bosque frondoso migraram para paragens distantes e, ao regressarem, viram o seu bosque em chamas. Desesperados, voaram incansavelmente para um lago próximo, trazendo gotas de água nos bicos, que largavam sobre o incêndio devorador. Andavam nesse afã, quando um génio da floresta as interpelou: «Não veem que esse vosso afã é inútil?». E eles responderam: «Sim, vemos, mas que outra coisa poderemos fazer?».