Fantasma ideológico assombra PS

A ‘constatação’ de António Costa de que Marcelo será reeleito PR e a hipótese de admitir um entendimento com Rui Rio abriram o debate ideológico no PS. A ala esquerda, que se revê em Pedro Nuno Santos, passou a contar com apoios da ala mais à direita por causa das presidenciais. Há quem fale de…

Fantasma ideológico assombra PS

As presidenciais relançaram o debate ideológico no PS numa altura em que a pandemia reaproximou o PSD de Rui Rio do PS de António Costa.

A ‘constatação’ por António Costa de que Marcelo será reeleito nas próximas presidenciais foi  recebida como uma bomba no partido e o apoio implícito do primeiro-ministro ao atual Presidente está longe de ser pacífico e mesmo dentro da direção do partido há defensores de que o PS deve apresentar um candidato próprio em vez de apoiar um ex-líder do PSD. 

Ana Gomes passou a semana a ouvir pessoas e está a avaliar as condições para avançar com uma candidatura sem o apoio do partido.  Certo é que as presidenciais estão a unir os setores mais à direita do PS com a ala mais à esquerda contra o eventual apoio a Marcelo Rebelo de Sousa. 

António Costa chegou à reunião da Comissão Política Nacional, na quinta-feira à noite, decidido a ignorar o tema das presidenciais, mas o tema acabaria por marcar a reunião. Porfírio Silva, do Secretariado Nacional e próximo do primeiro-ministro, foi uma das vozes que se manifestou no sentido de que o PS deve apresentar um candidato próprio embora tenha afastado a hipótese de apoiar a candidatura de Ana Gomes. 

O tema foi lançado por Daniel Adrião, que fez uma intervenção contra o apoio a um candidato de direita. O socialista está convencido de que esta reunião «mudou a estratégia do partido em relação às presidenciais, tendo passado para uma posição de encontrar um candidato na área do socialismo democrático».  

As declarações de vários socialistas ao longo da semana traduziram as divisões que existem sobre as presidenciais. Carlos César, presidente do partido, Augusto Santos Silva, um dos ministros com mais peso neste Governo e o defensor da via mais liberal no último Congresso do partido, e ainda Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, não descartaram o apoio a Marcelo – antes pelo contrário, secundaram a ‘constatação’ de Costa.

Ferro Rodrigues foi o primeiro a abordar as presidenciais antes de um almoço com António Costa: «Se as eleições fossem amanhã, não hesitaria em votar em Marcelo Rebelo de Sousa». 

O presidente do partido, Carlos César, no seu programa de debate semanal na TSF, não foi tão longe, mas afastou a hipótese de apoiar Ana Gomes, com o argumento de que não votará «num candidato rude, divisionista ou propenso ao radicalismo». 

Carlos César defendeu que o PS deve dar liberdade de voto aos militantes, como aconteceu nas últimas eleições presidenciais, mas quis deixar claro que faz uma avaliação positiva do mandato do atual Presidente da República. Se houvesse dúvidas sobra a vontade de alguns socialistas em dar o apoio a Marcelo, o ministro Augusto Santos Silva veio lembrar que o país precisa que «a articulação harmoniosa entre a Presidência da República, o Parlamento e o Governo continue». 

A declaração de Costa, na Autoeuropa, a dar como certa a reeleição de Marcelo rebelo de Sousa gerou várias críticas internas. Manuel Alegre, Francisco Assis, Manuel dos Santos, entre muitos outros, insurgiram-se contra Costa por ter assumido uma posição sem ouvir o partido. «O PS deve estimular e mais tarde apoiar uma candidatura da área do centro-esquerda», diz ao SOL o ex-eurodeputado Manuel dos Santos.

A possibilidade de o PS apoiar um ex-líder do PSD levou Ana Gomes a ponderar uma candidatura. A socialista tem ouvido várias pessoas para avaliar se tem condições para avançar. Se avançar, será sem o apoio do PS, mas, naturalmente, contará com o apoio de muitos ‘camaradas’.

O apoio a Eanes e a ‘crise o secretariado’

A verdade é que o ambiente no partido – apesar dos apelos à unidade feitos por Costa – está tenso e não falta quem lembre as ‘guerras’ de outros tempos por causa das presidenciais e as clivagens ideológicas entre as alas mais à esquerda e mais à direita do PS. Há, aliás, quem ainda tenha bem presente – recordando as muitas semelhanças do que se está a passar com este eventual apoio a Marcelo – a crise aberta em 1980 com o apoio à recandidatura de Ramalho Eanes. O PS, contra a vontade do seu líder, Mário Soares, decidiu apoiar a recandidatura de Eanes. Soares discordava e autossuspendeu-se de secretário-geral até às eleições. Voltou  à liderança pouco tempo depois, tendo contra si a maioria dos membros do Secretariado Nacional que tinham apoiado Eanes: de Salgado Zenha a António Guterres, passando por Jorge Sampaio, Vítor Constâncio ou António Arnaut – que faziam parte do grupo que ficaria conhecido como o ‘ex-secretariado’. 

Soares percebeu que era preciso uma clarificação e avançou para congresso. No Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o grupo de Guterres e Constâncio não apresentaram candidato e Soares venceu com mais de 70% dos votos. Salgado Zenha era uma possibilidade, mas não quis. Ao seu lado, o fundador do PS tinha Almeida Santos, Manuel Alegre e Jaime Gama. 

A seguir ao congresso, o grupo – em que se incluía António Costa – passou a ‘conspirar’ no sótão de Guterres em Algés e concentrou as energias no Parlamento.  

Mas, nas eleições seguintes, Soares não perdoou a Guterres e ofereceu-lhe um discreto terceiro lugar na lista de Braga (naturalmente para recusar). Jorge Sampaio ainda tentou negociar  que um terço dos candidatos elegíveis fossem provenientes do ‘ex-secretariado’, mas Soares não aceitou e deixou-os fora das listas – praticamente a todos, menos a Jaime Gama e à líder da JS Margarida Marques.

Na sequência dessas legislativas, Soares fecharia o acordo de Bloco Central com Mota Pinto.

Não sem antes voltar a ter de enfrentar debate ideológico com o grupo do ‘ex-secretariado’ e de realizar um referendo interno no partido – que ganhou.

Foi acusado de ‘meter o socialismo na gaveta’ e chegou à grelha da partida para as presidenciais de 1986 quase sem apoios e com  popularidade abaixo dos 8% (havia estudos internos que lhe davam 4%). O partido quase viveu uma cisão, mas resistiu (ver página seguinte).

Curiosamente, entre os socialistas, não falta quem lembre que a questão é que António Costa, não tendo sido nunca um ‘soarista’, é talvez o político do PS mais parecido com Mário Soares. E, por isso, saberá resistir.