À beira da terceira fase de desconfinamento, médicos alertam para necessidade de controlar surto junto dos mais desfavorecidos

Aumento de casos na região da Grande Lisboa está a gerar apreensão. À beira da terceira etapa de desconfinamento, médicos pedem avaliação dos riscos e das respostas em concelhos onde as desigualdades sociais e a precariedade de habitação e trabalho podem contribuir para a expansão do vírus.

À quarta semana de desconfinamento, a Grande Lisboa é o principal foco de novos casos de covid-19 e o único sobressalto. Hoje há uma nova reunião técnica no Infarmed para avaliar a situação e avaliar as condições para a terceira etapa do plano de desconfinamento, marcada para a próxima segunda-feira com a reabertura do pré-escolar e restante comércio. Para os médicos ouvidos pelo i, é preciso perceber com mais detalhe o que se está a passar na região. Mas há elementos a gerar apreensão: o surto detetado no bairro da Jamaica, no Seixal, e os casos que têm sido detetados em concelhos da periferia da Grande Lisboa, que levam a temer que a precariedade de habitação e de trabalho em zonas limítrofes da capital estejam a servir de terreno para expansão do vírus.

No briefing de ontem, a diretora-geral da Saúde explicou que a situação na região de Lisboa e Vale do Tejo é multivariada, resultando de surtos em bairros, em fábricas, transmissão familiar e casos esporádicos de transmissão comunitária. Sem revelar todos os focos, as autoridades referiram-se ao caso particular do Seixal, onde a autarquia criticou nos últimos dias a falta de comunicação com as autoridades de Saúde. Graça Freitas sublinhou que, dos 16 casos detetados, quatro pessoas já estão curadas e recusou a ideia de um confinamento de bairros sociais. A questão fora colocada depois do presidente da associação de desenvolvimento do bairro da Jamaica, Salimo Farã Mendes, ter afirmado à SIC Notícias que desde março pedia uma intervenção no bairro para evitar entradas e saídas de pessoas que não residam no bairro e onde continuaram a acontecer concentrações. Também a ideia de testar os habitantes foi recusada pelo secretário de Estado, sublinhando que o vírus é democrático. Além dos casos confirmados no Seixal, os concelhos de Lisboa, Amadora, Loures e Sintra são aqueles em que se regista um maior aumento de casos, acima do que acontece na margem Sul, não tendo sido referido mais casos.

Se o ponto de situação é conhecido, estará a região de Lisboa numa situação confortável para a terceira etapa de desconfinamento? Na conferência de imprensa, Lacerda Sales indicou que a avaliação será feita hoje e, se necessário, poderá haver ajustes. Para Filipe Froes, pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, a situação que se começa a viver em Lisboa merece uma atenção redobrada, considerando que os principais ajustes nesta fase devem ser numa perspetiva de intervenção económica e social mais do que adiar o desconfinamento. “Temos de identificar dois tipos de risco: o risco de evolução de formas graves de doença, como idade e comorbilidades, e o risco de contrair a doença, onde entram a indiferença, a iliteracia e a pobreza. A pobreza porque obriga a condições de vida e de trabalho precárias. A situação em Lisboa neste momento é um exemplo do que acontece quando o vírus encontra situações de cariz social e económico que são um risco nesta infeção como outra qualquer doença que se transmitisse da mesma maneira”. Para o médico, a situação que se vive em alguns pontos de Lisboa pode ser comparada ao que se passa na América Latina e nas favelas do Brasil e exige uma estratégia mais global para garantir que as pessoas seguem as medidas de distância social e isolamento. “Temos tido casos em que as pessoas, pelas condições em que vivem – dez pessoas num quarto – dificilmente conseguem manter o isolamento. O rastreio de contactos é mais complexo, porque facilmente temos dezenas de contacto próximos, em que por sua vez a quarentena e isolamento são também difíceis porque as pessoas podem recear perder o trabalho”. Aqui chegados, Filipe Froes defende que são medidas que vão ao encontro das condições locais que importa acautelar. “Temos de garantir a estas pessoas que têm capacidade de isolamento e conter a doença na sua comunidade sem serem vítimas da precariedade de emprego e tendo alguma forma de sustento. Se não tivermos capacidade de controlar o surto junto dos mais desfavorecidos, todos seremos prejudicados. Isto não é uma questão apenas de bondade ou altruísmo, é uma questão de saúde pública e de agir para o bem de todos”, conclui o médico.

Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, assume também apreensão com os números de Lisboa, defendendo que é preciso perceber ao certo quantos casos estão relacionados com surtos e cadeias de transmissão identificadas e quantos são casos de transmissão comunitária em que não é encontrado um elo de ligação. Para o médico, as vulnerabilidades económicas e sociais na periferia de Lisboa, onde têm sido detetados mais casos, são também um motivo de preocupação. “Com o desconfinamento era previsível um aumento de casos, aparentemente só se está a verificar em Lisboa e Vale do Tejo, pelo que a análise tem de ser feita de forma mais minuciosa”, defende Ricardo Mexia, admitindo que, em função dessa análise, e a dias da terceira etapa de desconfinamento, poderá ter de ser equacionado uma diferenciação das medidas a nível regional. E resume o momento atual: “Se numa fase inicial a epidemia estava focada no norte, que continua a ter mais de metade dos casos confirmados, a situação agora inverteu-se e é preciso conter o problema. Quando estamos num cenário com um número relativamente baixo de casos, é importante identificar as fragilidades e intervir sobre essas situações concretas para impedir que se repitam”.