O Infante D. Henrique. O rosto esclarecedor do ‘Homem de Chapeirão’

Com o início do restauro do políptico de Nuno Gonçalves previsto para o dia 1 de junho, evocamos uma das suas figuras centrais, o Infante D. Henrique, e recordamos um pouco da história destas esplêndidas pinturas conservadas no Museu Nacional de Arte Antiga.

Jorge Filipe de Almeida
(DPhil pela Universidade de Sussex, Reino Unido)

 

O infante D. Henrique (1394-1460) – o ‘Infante’, simplesmente – é figura conhecida de sobejo na História universal, sob o cognome de O Navegador. Ele encarnou simbolicamente o esforço coletivo da Nação Portuguesa na Era dos Descobrimentos. O seu rosto acabou por extravasar da iconografia Quatrocentista segura que lhe está associada para a decoração monumental de praças públicas em Portugal e nas suas antigas colónias. Podemos encontrá-lo, também, amiúde em espaços acarinhados pela diáspora portuguesa, nos vários continentes. O Homem de Chapeirão, por vezes empunhando o modelo de uma caravela ou um astrolábio, quais verdadeiros ‘atributos hagiológicos’, permanece um verdadeiro meme nacional e tudo leva a crer que continuará a sê-lo.

A comemoração do quinto centenário do seu nascimento, em 1894, ensaiou um movimento de exaltação patriótica que ajudasse a lançar um bálsamo sobre a recém-ocorrida humilhação do ultimato britânico (1890). Mas, a este movimento responderam muitos republicanos com reticência se não mesmo hostilidade. Voz destacada entre estes últimos, Teófilo Braga contrapunha às loas oficiais que (A Vanguarda, 6.3.1894): «com o ânimo do lucro, introduzindo nas suas colonizações a escravatura africana, o infante desviou o génio nacional para o mercantilismo […]».

Na grande Exposição do Mundo Português, que comemorava em 1940 o duplo centenário da Fundação e da Restauração, a figura de D. Henrique não faltou à chamada. O Infante era, na verdadeira aceção da palavra, a ‘figura de proa’ do Padrão dos Descobrimentos, concebido pelo arquiteto Cottinelli Telmo e pelo escultor Leopoldo de Almeida. Precisamente duas décadas mais tarde, por ocasião de uma nova efeméride henriquina – o quinto centenário da morte do príncipe, celebrado em 1960 com a maior pompa – o padrão passou, no mesmo molde, de arte efémera em estafe a monumento de cimento e cantaria.

Pode afirmar-se que a figura do ‘Infante de Sagres’, de tão sobreutilizada que foi pelo Estado Novo, causa algum pejo ao atual regime, que lhe tem guardado alguma distância, mesmo que respeitosa. Repare-se como o ano de 1998, que comemorava o quinto centenário da chegada de Vasco da Gama à Índia, teve um relevo muito superior ao das comemorações henriquinas de 1994, ano do sexto centenário do nascimento do príncipe de Avis.

Tendo presente o que acabámos de relevar, é por demais curioso que a identificação do rosto de D. Henrique permaneça uma das pedras angulares para uma abordagem racional de um outro símbolo nacional – o Políptico de S. Vicente de Fora. Esta pintura, que é atribuída a Nuno Gonçalves, pintor régio de D. Afonso V (que reinou de 1438 a 1481), constitui o florão do Museu Nacional de Arte Antiga desde há mais de um século, quando ingressou na coleção do então reestruturado museu lisboeta.

José de Figueiredo e O Pintor Nuno Gonçalves

Este ingresso deveu-se em boa medida a José de Figueiredo que, nomeado diretor daquela instituição em 1911 pela então recém-estabelecida República, a dirigiu com aura de grande autoridade e prestígio até 1937, data da sua morte. A pintura acabara de ser restaurada na Academia Nacional de Belas-Artes pelo pintor Luciano Freire (entre 1909 e 1910). As tábuas tinham permanecido anteriormente no Paço Patriarcal de S. Vicente de Fora em relativa penumbra – não se sabe desde quando, nem por que razão –, mal acopladas e pior compreendidas, mas longe de terem servido de andaimes, como certa ‘lenda negra’ quis fazer crer.

Voltaire, com a sua habitual ironia, garantia-nos que não duvidada do caráter divino da Igreja Católica: como explicar, caso não tivesse tal caráter, que, após tantos erros perpetrados em tantos séculos, a instituição confiada a Pedro por Cristo permanecesse de pé? No entanto, acusar esta instituição essencialmente conservadora de desleixar o seu património, nomeadamente o artístico, é patentemente injusto. Eis um erro em que a Igreja não incorreu nos seus dois milénios de História. A quem não reconheça esta evidência, aconselha-se vivamente, como ‘penitência’, uma ‘peregrinação’ a Roma, cidade dos Papas, e uma visita aos Museus do Vaticano.

No entanto, leia-se a seguinte prosa anticlerical, bem merecedora de tal ‘penitência’, retirada do jornal O Século (4.5.1910): «Bispos e prelados de todas as características artísticas e intellectuais; cónegos rotundos, espaçados em suores abumdantes, famulos melífluos, habituados a admirar e a obedecer, por essas maravilhas passaram [as tábuas de Nuno Gonçalves], sem que um dos retratos que n’elles figuram lhes despertassem um olhar carinhoso, um velado e compassivo olhar de admiração.»

Dois dias após a notícia acima transcrita, que não destoa das melhores vinhetas de Leal da Câmara para A Velhice do Padre Eterno, a 6 de maio de 1910, portanto, teve lugar na sala de exposições da Academia a mostra das pinturas de Gonçalves recém-restauradas por Luciano Freire, em simultâneo com o lançamento da monografia intitulada O Pintor Nuno Gonçalves, da autoria de, precisamente, José de Figueiredo.

Poucos meses mais tarde, a implantação da República tornou caduca a promessa feita no ano anterior ao cardeal D. António Mendes Belo, que cedera de bom grado as tábuas pintadas na condição de: «serem reenviadas para o Paço Patriarchal de São Vicente de Fora, logo que a restauração se conclua».

O livro de Figueiredo tinha uma qualidade quase inédita no nosso meio e merece ainda hoje leitura. Nesta publicação de autor – melhor prova haverá da indigência da historiografia da arte portuguesa por aqueles anos? – Figueiredo acoplava as seis tábuas, erradamente, em dois trípticos e identificava o Santo homenageado como S. Vicente, também erradamente. No entanto, acertava ao atribuir a pintura a Nuno Gonçalves.

O prestígio de Figueiredo poderá ser ponderado pelo facto de só em 1940, três anos após a sua morte, terem os seis painéis sido expostos como um único políptico, disposição homologada por despacho ministerial dois anos mais tarde. A esta quase evidência estética e geométrica se opusera denodadamente Figueiredo desde que ela fora descortinada por Almada Negreiros em 1926, ano tão quente para a ‘Questão dos Painéis’ e para a própria vida política portuguesa. Almada, em termos exaltados, como era seu timbre, reivindicara a descoberta em exclusivo. Reconheça-se que Figueiredo, zelosamente, pontificaria sobre a candente questão por mais de um quartel. Mação, tal como Luciano Freire, Figueiredo manteve-se à cabeça do MNAA até à sua morte (1937): tolerância salazarista, flexibilidade política do crítico de arte, ou ambas? Pouco interessa. José de Figueiredo perdurou ainda mais na toponímia local, dando o seu nome, ainda hoje e com justiça, ao largo fronteiro ao edifício original do museu. Mas a aura de Figueiredo mantém-se também dentro do próprio MNAA: não são as célebres tábuas designadas vulgarmente – por equívoco, tudo o sugere – de ‘Painéis de São Vicente’?

Consta que por aqueles anos, ao anúncio da visita próxima de algum especialista estrangeiro podia seguir-se um acesso à pintura irritantemente difícil, senão mesmo impossível. Georges Hulin de Loo, professor em Ghent, parece ter sido sujeito a tal tantalização logo em 1909, frente às portas cerradas da Academia de Belas-Artes. Mas, o que terá levado o historiador de arte belga a estender a sua viagem de Madrid – repositório da melhor pintura flamenga, no Museu do Prado – até Lisboa, cidade algo provinciana e distante dos centros da crítica de arte internacional? Conjetura-se que Hulin de Loo tenha lido o artigo ‘Some Early Portuguese Paintings’, publicado nesse mesmo ano de 1909 no The Burlington Magazine por Sir Herbert Cook, visconde de Monserrate. Em cerca de uma página de texto, que vinha acompanhado da reprodução fotográfica dos painéis por restaurar, Cook dava a conhecer ao público internacional aquelas tábuas, ainda então sem autor atribuído. O pragmatismo anglo-saxónico delineava, desde logo, uma abordagem racional para a investigação a empreender:

«Muito pouco pode ser assegurado quanto à data em que estas esplêndidas pinturas foram executadas. A indumentária poderia indicar 1440-50 e se, como tem sido suposto, o retrato do Príncipe Henrique o Navegador aparece num dos grupos, esta data seria confirmada [em nota de rodapé: «foi o quarto filho de João I, e viveu entre 1394 e 1460. Ele parece ter cerca de cinquenta anos de idade na pintura.»] A maior parte das personagens são claramente retratos, e não seria impossível a um historiador identificá-los».

Face à despretensiosa factualidade de tais afirmações, quem poderia prever o grau de confusão destinado a inquinar a ‘Questão dos Painéis’ por mais de um século? Retrospetivamente, suspeita-se que a não consideração de datas tão recuadas do século XV (1440-1450) para a execução do políptico terá constituído ao longo das últimas décadas o maior entrave para a sua compreensão. Adriano de Gusmão, bom conhecedor da nossa Escola de Pintura e, certamente, um dos mais lúcidos críticos da temática, não terá beneficiado desse grau de liberdade intelectual. Assim, confira-se o seguinte juízo feito por este autor :

Prejudicou fundamentalmente toda a sua boa tentativa, ter o Dr. José Saraiva partido do ano de 1445 – que supôs decifrar sob a rubrica do pintor [Gusmão refere um vestígio ilegível abaixo do monograma aposto na bota da figura com um só joelho em terra no Painel do Infante, marca já reconhecida por José de Figueiredo] – para a identificação das figuras pintadas no Políptico.

Uma das reviravoltas mais surpreendentes da ‘saga dos Painéis’ poderá ser o facto de a precisa data de 1445, seguida à iniciais de Nuno Gonçalves, ter permanecido indecifrada até à sua publicação no livro Os Painéis de Nuno Gonçalves (Jorge Filipe de Almeida e Maria Manuela Barroso de Albuquerque; Editorial Verbo, 2000 e 2003). Esta inscrição autoral foi pintada, não longe do monograma, em posição invertida no botim de um adolescente – o único menor figurado entre cerca de seis dezenas de retratados. Ora, o Rei de Portugal em 1445 era D. Afonso V, um adolescente que iria perfazer catorze anos de idade em 15 de janeiro do ano seguinte.

Por detrás de D. Afonso V, figura, precisamente, o Homem de Chapeirão – o infante D. Henrique, vulto fúnebre entre todos, envolto em trajo de tons violáceos e, certamente, atormentado por um sentimento de culpa mais direta do que a de qualquer outro membro da família de Avis. Com este último juízo entrámos no terreno da interpretação iconográfica do Políptico de Nuno Gonçalves. Porque a data de 1445, uma vez reconhecida, tem as maiores implicações para a compreensão da pintura.

 

José Saraiva e Os Painéis do Infante Santo

De alguma maneira, a data de 1445, um quarto de século, ou mesmo alguns anos mais, anterior ao período defendido pelo MNAA [década de 1470], obriga a revisitar a contribuição de José Saraiva em Os Painéis do Infante Santo [novamente uma edição de autor, do ano de 1925] e a propor a iconografia seguinte, que retoma em parte a tese daquele autor: os filhos de D. João I, aqueles mesmos que Camões designou de «Ínclita Geração», ajoelham-se aos pés de D. Fernando, o Infante Santo, o benjamim a quem o martírio em Fez tornava merecedor da veneração dos irmãos mais velhos. Na circunstância, a angústia dos príncipes de Avis por não poderem proporcionar um funeral cristão ao infante mártir era compartilhada por dezenas de personagens, igualmente retratadas no políptico. Com efeito, D. Fernando falecera no cativeiro em Fez, no ano de 1443. Dois anos mais tarde, quando Gonçalves concluiu e assinou a sua obra, os restos mortais do infante permaneciam retidos pelos Mouros nas muralhas de Fez.

As provas do acerto da tese fernandina são múltiplas e sólidas, mas exigiriam uma exposição extensa e cuidada, incompatível com as limitações deste artigo.

Quando o leitor confirmar essas mesmas provas, dar-se-á conta da falta de sensatez demonstrada pelo MNAA ao persistir, duas décadas passadas sobre a publicação das mesmas, em facultar aos seus visitantes uma nota explicativa do seguinte teor [o museu data o políptico para os anos de 1470, recorde-se]: «As seis pinturas atribuídas a Nuno Gonçalves apresentam um agrupamento de 58 personagens em torno da dupla figuração de São Vicente.

Uma solene e monumental assembleia representativa da Corte e de vários estratos da sociedade portuguesa da época, em ato de veneração ao patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magrebe.»

Em abono da verdade e da boa prática museológica, deveria o MNAA abrir-se a estoutra alternativa: «As seis pinturas assinadas por Nuno Gonçalves em 1445 apresentam um agrupamento de 58 personagens em torno da dupla figuração de D. Fernando, o Infante Santo.

Uma solene e monumental assembleia representativa da Corte e de vários estratos da sociedade portuguesa da época, em ato de veneração ao infante mártir e inspirador da expansão militar quatrocentista no Magrebe, e cujo corpo, retido em Fez, carecia então de funeral cristão.»

Nuno Gonçalves e os seus contemporâneos viam os dois mártires – o infante D. Fernando e o diácono Vicente – irmanados, a um milénio de distância, pelo falecimento em cativeiro, seguido da privação de sepultura condigna, por sanha de cruéis carcereiros de fé inimiga (em Marrocos, Lazeraque substitui Daciano, o governador romano de Valência): eis a explicação simples para a confusão iconográfica. Aliás, aquele paralelo já fora intuído ao longo de décadas, com vários defensores da tese vicentina a aludirem, de forma mais ou menos explícita, à figura do Infante Santo.

Muito se debateu a dificuldade em aceitar que D. Fernando pudesse ter sido representado de dalmática. No entanto, já no início do século XIII, o papa Inocêncio III autorizara que, em situações de cativeiro, um leigo pudesse ser autonomamente elevado a diácono, por forma a poder proporcionar o culto cristão aos seus companheiros de cárcere. A eventual apostasia da fé cristã por parte dos cativos em terra de Mouros provocava percetível angústia junto dos familiares e conterrâneos. A santificação de D. Fernando na pintura reconhece também o triunfo da constância da sua fé cristã – significativamente, quando lhe dedica uma peça de teatro, Calderón de la Barca intitula-a O Príncipe Constante. Finalmente, a dalmática seria também a mortalha julgada condigna para aquele corpo que fora profanado ao ser exibido nu, suspenso por uma corda atada aos seus pés, nas muralhas de Fez.

Note-se como, ao tentarem impor, numa dicotomia acirrada, o reconhecimento no políptico da figuração de S. Vicente sobre a de D. Fernando, muitos historiadores da Arte demonstram incompreensão face aos aspetos mais subtis da representação de um príncipe sob a roupagem iconográfica de um santo, tantas vezes homónimo. Não resulta difícil encontrar exemplos de membros da família real portuguesa assim retratados: refiram-se Rainha D. Catarina como Santa Catarina de Alexandria e Infante D. Luís como S. Luís de França, pinturas pertencentes ao MNAA.

(Continua na edição da próxima semana)