Pequeno… mas terrível

Um dia destes, já não sei a que propósito, perguntei a mim próprio qual seria o livro mais fininho que tenho cá em casa. Devo esclarecer qual o critério para atingir o estatuto de livro: possuo muitas brochuras, folhetos, cadernos, etc., mas um livro distingue-se, creio, por ter uma lombada. Por muito estreita que esta…

Um dia destes, já não sei a que propósito, perguntei a mim próprio qual seria o livro mais fininho que tenho cá em casa. Devo esclarecer qual o critério para atingir o estatuto de livro: possuo muitas brochuras, folhetos, cadernos, etc., mas um livro distingue-se, creio, por ter uma lombada. Por muito estreita que esta seja, tem de ter lá o título do livro impresso, o que por vezes obriga à utilização de letrinhas minúsculas.

Vasculhando nas estantes, deparei-me com A União do Céu e do Inferno, de William Blake. Com uma lombada de apenas cinco milímetros, pode certamente considerar-se um livro fininho. A página 73 é a última numerada.

Mas fiquei com a sensação de haver outro ainda mais curto – e tinha razão. Diz-me a Verdade Acerca do Amor – dez poemas, de W. H. Auden: uma lombada de 4 milímetros e umas meras 46 páginas. Seria possível ir mais longe do que isto?

Avaliei outro candidato. Embora de formato ainda mais reduzido, Para que Serve a Poesia Hoje?, de Jean-Claude Pinson, revelou-se um tudo-nada mais longo: 60 páginas, não o suficiente para destronar Auden.

Logo por coincidência, enquanto fazia esta pesquisa e medições encontrei um comentário que o recentemente falecido embaixador José Cutileiro me fez a propósito de um livro seu. «Há uma tendência perniciosa para editar coisas muito grandes. Havia um grego de Alexandria que dizia: ‘Um grande livro é um grande mal’. Este pelo menos um grande mal não pode ser».

O livro a que o embaixador se referia tem, ainda assim, mais de cem páginas. Nada que se compare ao recordista absoluto desta espécie de ‘liga dos pequeninos’: um livro que um dia me chamou a atenção numa livraria, e que vim a adquirir uns anos mais tarde.

Chama-se L’instant de ma mort, e é da autoria de Maurice Blanchot. Já o li três ou quatro vezes – e até podia ter lido mais vezes ainda, pois compõe-se de apenas 17 páginas, uma das quais em branco!

L’instant de ma mort relata uma experiência que Blanchot viveu em junho de 1944, quando se viu perante um pelotão de fuzilamento nazi. Ali descreve como na altura se sentiu conciliado com a ideia de se despedir deste mundo.

Blanchot – que evidentemente sobreviveu para contar a história, vindo a morrer em 2003, aos 95 anos – termina o seu texto com uma frase em que fala de ter ficado com uma «sensação de leveza». Talvez por isso, com apenas 17 páginas, este ‘instante da sua morte’ seja tão breve e tão leve. Mas nem por isso menos terrível. Combinadas, estas duas qualidades fazem com que fique como que suspenso no espaço e no tempo, com as suas palavras a pairarem-nos sobre a consciência.