Quatro irmãos, quatro países. Filipa Moreira da Cruz: “En mai, fait ce qu’il te plaît”

Estas proezas justificam os novos tarifários e nem os franceses, que são peritos em queixar-se, ousam resmungar. Eles são cordon bleu, especialistas em bricolage, canalizadores improvisados, mecânicos por necessidade, mas cabeleireiros é que não!

Bem vindos à nova normalidade! Maio 2020 já é uma data histórica para muitos habitantes do planeta azul. O mês do desconfinamento, da ‘desclausura’, mas sem desobediência nem desenvoltura. Avançamos a passos de bebé, com prudência e sem excessos. Caso contrário, voltaremos para casa antes de saborear a tão ansiada liberdade. Como dizem os franceses, «en mai, fait ce qu’il te plaît» (em maio, faz o que te apetece). Será? Pela primeira vez, na época contemporânea, uma pandemia virou tudo do avesso. O que era válido e aceite foi posto em questão, modificado e, até mesmo, abolido. Esqueçam (quase) tudo o que viveram até agora. O verdadeiro milénio começa com a era pós covid-19.

As novas medidas de distanciamento, as regras de higiene a cumprir, os trabalhos que deixarão de existir e os que surgirão vão ser uma prova de fogo à nossa resiliência, criatividade e capacidade de superação. No início, parece tudo simples porque em teoria corre tudo bem. Mas na prática, as coisas são outras. Os seres humanos não têm comportamentos previsíveis como o cão de Pávlov. A genuína revolução não se escreve a vermelho numa folha de papel, nem se desenha com régua e esquadro. Este vírus tem demonstrado que, de um momento para o outro, tudo muda.

Cientistas, médicos e virologistas não chegam a consenso e o coronavírus não vai de férias tão cedo. Está a dar-lhe um gozo enorme infetar e, por vezes até matar, ricos, pobres, altos, baixos, gordos, magros, solteiros, viúvos, casados, velhos, jovens, migrantes, emigrantes, imigrantes, enfermeiros, doutores e engenheiros. A maldita covid-19 é capaz de derrubar super- potências económicas, provocar um pandemónio diplomático e trancar a quatro chaves quase toda a população sem alaridos nem fogos de artifício. Não foram necessárias as tão temidas armas químicas, nem foi lançado nenhum míssil nuclear. Bastaram o pânico, o medo e a desconfiança. Este inimigo é subtil, traiçoeiro e imprevisível.

Mas vamos ao que interessa! Afinal de contas, a vida continua e os países são unânimes: a retoma económica não pode esperar. Em França, muitos regressaram ao trabalho munidos de máscaras, luvas e viseiras. Não havendo testes para todos aposta-se na prevenção. As pessoas desejam recuperar a vida de antes, mas esta nova realidade transformou hábitos e rotinas. De repente, os donos dos cães mudam de passeio para evitar qualquer contacto, os vizinhos deixam de se cumprimentar com medo que um simples ‘bonjour’ os possa contaminar, as crianças já não brincam juntas nos parques, as padarias não têm o pão do dia cortado aos bocadinhos para provar. Caminhamos apressadamente e analisamos, de longe, os rostos uns dos outros com um ar desconfiado porque é mais difícil sorrir com os olhos.

Os professores, bem como todos os funcionários do meio escolar, passaram a estar mascarados e só falta a capa para serem autênticos super-heróis. A escola reinventou-se, o melhor que pode, para cumprir todas as normas: entrada e saída por portas diferentes, máximo de 15 crianças por sala (finalmente!), marcas no chão, lavagem frequente das mãos, música durante o recreio, aulas de yoga e meditação. Vale tudo para preservar a harmonia entre os mais pequenos. A cantina também se adaptou, passando a acolher apenas metade da capacidade para respeitar a distância exigida.

Os cabeleireiros voltaram a abrir portas e como ninguém pode viver muito tempo sem cortar o cabelo, não têm tido mãos a medir. De tesoura e pente na mão, os profissionais tentam remediar o desastre porque lhes foi impossível evitar o pior, uma vez que isso já tinha sido feito em casa. Para alguns, a ‘carecada’ foi mesmo a única solução. E que dizer do sexo feminino! É ver desfilar velhas e jovens com cabelos tricolores porque, num devaneio, tiveram a triste ideia de pintar a cabeça de verde, azul ou cor-de-rosa e agora não aguentam a máscara tantas horas seguidas para ser feita uma descoloração em condições. ‘Fica como ficar’. Estas proezas justificam os novos tarifários e nem os franceses, que são peritos em queixar-se, ousam resmungar. Eles são cordon bleu, especialistas em bricolage, canalizadores improvisados, mecânicos por necessidade, mas cabeleireiros é que não!

Os restaurantes e os cafés ainda não estão operacionais. Isso dá-lhes mais algum tempo para a grande mudança. Ousadia, imaginação e sentido de humor serão os melhores aliados dos profissionais da restauração. Surpreendam-nos, senhores! A nova normalidade talvez seja servida em pratos e talheres biodegradáveis, copos de cartão, cadeiras espaçadas (lá se vai o bistrôt parisien), ementa escrita na velha ardósia ou menus descartáveis. A brigada na cozinha vai ver o chef à distância, por motivos de força maior, claro! Para muitos empregados será ainda melhor que ganharem o euromilhões. Quanto aos clientes também terão que ser audazes. Esqueçam tudo o que conheceram até agora. Os que tinham em mente um jantar íntimo e romântico, abstenham-se. Em contrapartida, aqueles que contam as calorias e recusam-se a engordar estão cheios de sorte. Munidos de máscara serão incapazes de degustar seja o que for, mas como os olhos também comem… ‘Vê, paga e cala!’

E os beijos, as carícias, os abraços? Os gestos que nos acalmam e reconfortam voltarão algum dia? Esperemos que sim, para o bem da Humanidade. Nenhuma aplicação virtual substitui os afetos. Até lá, as palavras serão as únicas capazes de aliviar as dores do corpo e da alma.