Restauro ameaça painéis? Carta reacende polémica

Conjunto de 24 personalidades manifestou receio de que intervenção danifique ‘uma peça decisiva do nosso património’. Conservadores-restauradores sentiram-se visados e dizem que ‘medos expressos não fazem qualquer sentido’.

Uma carta aberta alertando para os riscos inerentes ao restauro dos famosos Painéis de Nuno Gonçalves – que deverá começar já dia 1 de junho, à vista dos visitantes do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) – fez estalar o verniz no meio dos conservadores. O texto da carta, subscrita por 24 personalidades (entre as quais a historiadora Irene Pimentel, o antigo ministro Vera Jardim, o escritor Nuno Júdice e o cientista social Luís Salgado de Matos), refere que as pinturas estão «em perigo porque o ethos atual da restauração de pinturas antigas a óleo autoriza os restauradores a repintarem o quadro baseando-se em princípios que excluem o respeito pela obra a restaurar». E chama a atenção para um detalhe particular daquela obra emblemática do século XV português: o botim do adolescente que aparece no Painel do Infante, um dos dois painéis centrais do políptico. Jorge Filipe de Almeida, antigo professor universitário e estudioso dos Painéis, acredita que é aí que se encontra a inscrição autoral de Nuno Gonçalves, a data de conclusão e a chave de interpretação da pintura. «Por isso, na nossa exclusiva qualidade de cidadãos interessados, pedimos pela presente ao Sr. Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, ao Primeiro-Ministro, Dr. António Costa, e à Ministra da Cultura, Doutora Graça Fonseca, que tomem as medidas cautelares adequadas a garantir que o restauro dos Painéis de S. Vicente de Fora, em particular da minúscula zona acima reproduzida [inscrição no botim], não destrua uma peça decisiva do nosso património por via de uma repintura, disfarçada de restauro, que nos privaria da possibilidade de a datar e de identificação iconológica do seu autor, em conhecimento de causa», apelam os signatários do documento.

‘Simplesmente ridículo’
Entretanto, esta quinta-feira o Fórum dos conservadores-restauradores, que se identifica como «um grupo informal de novecentos e setenta e cinco profissionais, portugueses ou estrangeiros a trabalhar em Portugal, com um curso superior em Conservação e Restauro e associados através da rede social Facebook», reagiu com veemência à carta. «Revela um desconhecimento absoluto da Conservação e Restauro e da actividade do conservador-restaurador», acusa. E garante que os receios são injustificados: «Os conservadores-restauradores portugueses, nomeadamente os das duas instituições referidas e outros contratados para o efeito, são dos mais competentes existentes no país, pelo que os medos expressos não fazem qualquer sentido». O comunicado – que, apurou o SOL, não foi submetido à aprovação da totalidade dos membros do Fórum dos conservadores-restauradores – vai mais longe e descarta como «simplesmente ridículo» afirmar que a pintura pode ser destruída por um restauro.

Porém, a carta das 24 personalidades refere dois exemplos relativamente recentes de restauros controversos, um dos quais levou Mariano Rajoy, então ministro da Cultura, a ter de responder pelos danos causados numa pintura de El Greco pertencente ao Museu do Prado. «Há umas duas décadas os restauradores de um óleo de El Greco consideraram-se autorizados a repintarem-lhe a assinatura, que se tornou quase ilegível. O que causou um escândalo nacional no país vizinho», recordamos signatários.

‘A carta já conseguiu o seu objetivo’
Quanto à possibilidade de a inscrição autoral se encontrar na bota do adolescente (que Jorge Filipe de Almeida identificou como D. Afonso V), os conservadores-restauradores consideram uma «teoria absurda […] absolutamente ninguém corrobora com ela». Uma opinião partilhada pelo historiador de arte Vítor Serrão: «Há quem queira manter as nuvens obscurantistas para proteger as suas estapafúrdicas teses pessoais sobre os Painéis, assentes em pseudo-inscrições e pseudo-datas», escreveu Serrão no Facebook. Recorde-se, no entanto, que a tese de J. F. de Almeida recolheu apoios de destacados académicos internacionais, como David Birmingham, Felipe Fernández-Armesto ou Till-Holger Borchert.

Face ao apelo das 24 personalidades, o diretor do MNAA, Joaquim Caetano, assegurou esta semana ao Público: «A bendita bota continuará a ser pasto para novas interpretações nos próximos 100 anos. Eu só lá vejo elementos decorativos, mas se alguém vê mais qualquer coisa, muito bem». Jorge Filipe de Almeida, por seu lado, manifesta-se satisfeito com esta garantia. Contactado pelo SOL, declara: «De certa forma a carta já conseguiu o seu objetivo, ao levar o Diretor do MNAA a garantir que na área específica do botim do adolescente as conservadoras-restauradoras só retirarão o velho verniz amarelecido e aplicarão um novo».