No Brasil, a crise social e a sanitária ‘alimentam-se mutuamente’

“Não creio que a população perca de vista os efeitos da pandemia, apesar do peso dos escândalos políticos, mas é muito assustador ter um país com uma crise política que engrossa a cada dia e sem uma estratégia coerente e consistente para fazer face à pandemia”.

Era inevitável que o Brasil – que tem uma elite muito rica, que viaja muito internacionalmente, mas também regiões extremamente pobres, onde o isolamento social não é uma opção – viesse a ser dos países mais afetados? Ou tem mais que ver com o facto das medidas de isolamento social serem aplicadas por governadores, em oposição ao Governo federal?

Numa sociedade desigual como a brasileira, onde prolifera o trabalho informal e nichos de pobreza, ter a aplicação de medidas por parte dos governos estaduais que recorrentemente são contrariadas pelo Presidente torna a situação ambígua, levando a população a ‘escolher’ aquilo que acha que é o melhor para si e não cumprindo o que é definido por alguns governos estaduais. Naturalmente, numa situação de pobreza, os cidadãos pensam no dia a dia, ou seja, sem medidas rigorosas e amplamente articuladas, a preocupação está mais em garantir a sua subsistência diária. Não creio que o problema seja tanto a elite rica vs os mais pobres, mas a inconsistência das medidas aplicadas.

Teme que os recentes escândalos políticos à volta de Bolsonaro desviem as atenções da pandemia?

O Brasil vive uma situação extremamente complicada na área política, económica, social e sanitária, que se alimentam mutuamente. Não creio que a população perca de vista os efeitos da pandemia, apesar do peso dos escândalos políticos, mas é muito assustador ter um país com uma crise política que engrossa a cada dia e sem uma estratégia coerente e consistente para fazer face à pandemia. Essa devia ser a prioridade. É surpreendente que neste contexto de pandemia o país continue sem um Ministro da Saúde!

Bolsonaro perdeu boa parte dos seus aliados na direita tradicional: eram representados por Luiz Henrique Mandetta, Sérgio Moro e antes disso Rodrigo Maia. No que toca aos que se mantêm ao lado de Bolsonaro – militares, ruralistas, os interesses económicos representados por Paulo Guedes, seguidores de Olavo de Carvalho, etc. – como acha que influenciarão a resposta à pandemia?

Acho que estes setores não estão preocupados com a covid-19, tal como ficou patente na reunião ministerial [de 22 de abril] que foi divulgada. Parte destes grupos está preocupada com a sobrevivência política de Bolsonaro na medida que isso contribua para a satisfação dos interesses desses setores, e que fora a condição para o apoio político a Bolsonaro. Por outro lado, estarão eventualmente preocupados com as condições para implementação de políticas que favoreçam o setor que têm sob a sua alçada, como é o caso de Paulo Guedes. Condições essas que, face à agudização da crise económica, assim como ao contexto de crise política e de saúde pública, são cada vez mais diminutas.

Acha que estes grupos poderão tirar o tapete a Bolsonaro em breve?

É muito incerto o papel que as Forças Armadas têm e poderão vir a ter no Governo e que pode ser decisivo para o futuro do Brasil. Quanto aos militares que estão no Governo também não é totalmente claro que atuem de forma homogénea e de contenção das intenções mais radicais do Presidente, como ficou claro em declarações recentes.

Carmen Fonseca. Professora de Relações Internacionais na FCSH-NOVA e investigadora no IPRI