Entrevista de José António Saraiva ao i: “Se o 25 de Abril não tivesse acontecido, não estaríamos muito longe de onde estamos”

O novo livro de José António Saraiva visita a cadeira que nunca existiu, o início do regime de Salazar, passando pelas tricas com Marcello Caetano.

Arquiteto, antigo diretor do Expresso e fundador do SOL, José António Saraiva tem noção que o seu livro Salazar: a queda de uma cadeira que não existia, o primeiro de três volumes sobre a história do Estado Novo, é tudo menos consensual. Seja por defender que o salazarismo não era fascista, que Marcello Caetano procurava de facto uma transição para a democracia, ou os rasgados elogios à capacidade de Salazar, ressalvando que era um ditador, que criou um clima de medo e era convictamente antidemocrático, à semelhança de Marcello Caetano. Talvez Saraiva tenha uma perspetiva muito particular desta história. Afinal, o seu tio, José Hermano Saraiva, foi ministro do regime, enquanto o seu pai, António José Saraiva, era militante do PCP, exilado em Paris.

É impossível pensar em Salazar e não recordar a história da cadeira. Como foi o processo de se aperceber que se tratava de uma fabricação?

Como terá visto, este livro não é uma história tradicional, muito menos académica. Procura, de alguma maneira, reconstituir a história. Tinha de contar alguns eventos chave de forma pormenorizada, quase como num filme, que mostrasse ao leitor como aquilo aconteceu. Não bastava dizer que Salazar caiu da cadeira no dia tal e andar para a frente. Estava sentado aonde? E a fazer o quê? Em que dia? Isso levou-me a investigar, de declaração em declaração, confrontar os testemunhos. E apercebi-me que, com aquele conjunto de elementos, o puzzle não se completava. Era preciso andar para trás. Dou-lhe um exemplo. Dona Maria descreve o incidente dizendo: ‘Estava lá dentro, ouvi um estrondo, vim a correr e vi o senhor doutor a levantar-se do chão’. Já o calista, que supostamente estava junto de Salazar – numas histórias aparece já a tratar-lhe dos pés, noutras a lavar as mãos – diz: “Ouvi um estrondo, voltei-me, ajudei o doutor a levantar-se do chão, a sentar-se na cadeira e perguntei-lhe se queria que lhe fosse buscar um copo de água”. Salazar até teria dito ao calista: “Você também está muito branco, também estava assustado”. Ora, mas depois interrogamo-nos: a dona Maria não fala da presença de nenhum calista. Por outro lado, o calista, quando pergunta se é para ir buscar um copo de água, se a dona Maria estivesse presente obviamente seria ela que ia buscar o copo, ela é que conhecia os cantos à casa. Comecei a ver que não jogava. Depois havia o barbeiro, que dizia que estava a cortar o cabelo a Salazar. Às tantas, ele ia sentar-se, pensava que a cadeira lá estava e estatelou-se sozinho. Isto ainda mais estranho é. Uma cadeira de realizador, que é uma cadeira estreita, um velhote de 80 anos vai a sentar-se e atira-se? Inverosímil. O barbeiro e o calista diziam que lá estavam. Ora, eles nunca iam no mesmo dia. Às tantas percebi que isto era uma mentira. Enquanto os historiadores procuravam qual seria a história verdadeira, a certa altura percebi que nenhuma delas era real. Porquê? Enquanto o Salazar está a ser operado, não transpira nada, dizem que há um pacto de silêncio. Mas depois da operação é preciso explicar o que aconteceu. É aí que aparece a história da cadeira. A dona Maria, não querendo contar o que se passou, quando lhe perguntam pela cadeira diz: “Num acesso de fúria, atirei a cadeira ao mar”. Nessa altura, os outros – o calista, o barbeiro – ficam livres para sustentar a história da queda da cadeira, cada um afeiçoou-a um bocadinho à sua ideia. Às tantas, aparece um homem que diz: “Acompanhei o doutor Salazar com outra pessoa, levando-o da casa de banho”. Este testemunho não é valorizado porquê? Porque é anónimo. Eu ponho a questão ao contrário. Enquanto os outros se vangloriaram em público, se calhar este é o único que conta a verdade. Como havia um pacto de silêncio quer contar a verdade mas não mostrar a cara.

Este testemunho anónimo foi ainda durante o Estado Novo?

Foi ainda durante o Estado Novo.

Ou seja, de facto podia haver represálias.

Exatamente.

É engraçado que, tantos anos depois, esteja a desmontar uma parte da história portuguesa, conhecida de todo e escrita por Maria de Jesus. Uma mulher praticamente analfabeta, com pouca educação, mas com um talento para a fantasia quase hollywoodesco.

A Dona Maria é uma figura extraordinária. Não só encena a cena da cadeira, como vai encenar mais tarde – não faz parte deste livro, fará parte de outro volume – a história do Salazar em São Bento, depois deste regressar, convencendo-o que continua a ser primeiro-ministro. Ela dá instruções a toda a gente de que a única coisa que não lhe podem dizer é que ele já não é primeiro-ministro. Tem uma história engraçada, ela entra ao serviço do Salazar e do Cerejeira no Convento dos Grilos, onde eles viviam, quando já eram os dois professores. Quando Salazar vem para Lisboa, como ministro das Finanças, ela vem com ele, primeiro para uma moradia na Duque de Loulé e nunca mais se separam, nem nas férias. Quando Salazar se instala no palacete de São Bento, ela reconstrói um pouco o ambiente campestre. O arquiteto constrói uns galinheiros e umas capoeiras, onde ela cria coelhos, galinhas, produz ovos que vende a pensões ou hotéis de luxo. Ela permite a Salazar desligar-se completamente de assuntos que não a governação. Era mais do que teria sido uma mulher, porque isso exigiria uma atenção que ela não pedia. Permitia-lhe ter uma vida completamente isolada do mundo. Essa visão distanciada foi decisiva na Segunda Guerra, para engendrar uma política de ziguezagues que desorientou alemães ou ingleses. Mas foi fatal no final, quando Salazar se tornou incapaz de resolver o problema colonial, que deitou abaixo o regime.

No livro menciona um enfermeiro que administrava a Salazar injeções de opiáceos, como o Eucodal. Imagino que quisessem esconder do público que o ditador estava viciado.

Que ele tomou injeções de Eucodal é indiscutível. O José Pedro Castanheira recentemente publicou um livro, muito interessante, onde enfatiza um bocado essa história. Eu tenho dúvidas, pelo seguinte: há cartas do Salazar a pedir ao [embaixador] Marcelo Matias, em Paris, para lhe mandar o seu medicamento, que em Portugal não existia. Ora, o Eucodal vendia-se em Portugal, nas farmácias, com receita médica. É exato que ele o tomou. Com que regularidade, isso já não tenho a certeza.

Mencionou como Salazar estava isolado. No seu livro, escreve que ele próprio admite que conhece poucas pessoas e depende de amigos para ter informação. Quando olhamos para a cúpula do regime vemos que são todos amigos de juventude de Salazar ou amigos de amigos… O que num Governo não é muito bom sinal.

Salazar tinha uma vida muito enclausurada, não fez praticamente amigos. Mas é curioso que ele na universidade, e mesmo antes, no seminário, criou um grupo de amigos muito fiel, que o acompanhou do início ao fim da vida, o que não é algo muito vulgar. Mário Figueiredo, que ele conhece ainda no seminário, que foi ministro e depois presidente da Assembleia Nacional, os irmãos Pais de Sousa, Cerejeira, José Nosolini, Bissaya Barreto, o Lacerda… Nesse grupo de amigos assenta o Estado Novo, com muito poucas aquisições, como Marcello Caetano e o Teotónio Pereira. De facto, ele queixa-se que não conhece ninguém. A partir de certa altura, era uma limitação terrível, porque tinha de confiar nas informações que lhe davam esses amigos. Ele era profundamente solitário e morre em solidão. Ao mesmo tempo, conseguiu criar um conjunto de fiéis, que lhe dava solidez no seu controlo do poder. Parecia que era eterno. Você não viveu o salazarismo. A noção que tínhamos era de que aquilo nunca mais ia acabar, durava há tanto tempo. A hospitalização de Salazar foi um acontecimento brutal. Para os apoiantes e para própria oposição, que ficou sem saber o que fazer.

O que se lembra dessa altura? Como recebeu a notícia?

Estava em Paris com o meu pai. Ele estava a fazer chá, lembro-me perfeitamente. Ouvimos na rádio a notícia. O meu pai, que era exilado político, diz assim: ‘Isto vai ser uma grande trapalhada’. Ele próprio ficou contente, por um lado, mas ao mesmo tempo ficou preocupado sobre como é que íamos viver sem o Salazar. Porque a própria oposição, de certa maneira, vivia em função de Salazar. O que unia o Partido Comunista era a figura de Salazar, a oposição contra o Salazar, a luta contra Salazar.

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