“Memórias Póstumas de Brás Cubas” com selo da Penguin Classics esgota num só dia

Uma nova tradução da obra-prima de Machado de Assis, assinada por Flora Thomson-DeVeaux, e com prefácio de Dave Eggers, esgotou no dia em que foi posta à venda nos EUA, relançando os dados para a projecção deste gigante que vê ainda a orquestra da morte dando voltas à sua campa, enquanto nela cresce a árvore que mais…

Conta-me um livreiro, desses que, por natureza e tacto, talvez do longo convívio com os livros, aprendeu o discreto galanteio de relatar as suas estórias como se um morto estivesse ao comando da narração, e assim a vida já não pudesse maçá-lo muito, falando com a pachorra de um homem já desafrontado deste ambiente caótico e burlesco da vida, ainda mais em tempos de pandemia, conta-me que por estes dias a livraria está praticamente deserta, mas que o trabalho não diminuiu. Antes pelo contrário. Diz que se esfalfa agora a responder às apressadas solicitações que lhe chegam pela internet. Com toda a barafunda que se gerou, refere que, pelo menos num aspecto, as coisas melhoraram: é que agora os poucos clientes que lhe aparecem na livraria já não vêm só passear a mosca que lhes azucrina a alma. Se alguém atravessa aquela porta, vem com o firme intuito de comprar livros. Ainda me adiantou este livreiro que no outro dia, num dia em que não tinha aparecido ainda ninguém, passou lá um cliente que quis saber o que tinha do Machado de Assis. Fossem livros dele ou sobre ele. E que não foi só para consultar, para acabar enjeitando a maioria e levar, no fim, um ou dois. Mas não foi o caso; levou tudo. Apresentava-se, assim, um mistério. Ainda que Machado de Assis possa muito justamente ser tido como um dos mestres que melhor se pegou com esta língua, que mais fez dela segundo as suas necessidades do seu génio “enlouquecidamente divagador” (Harold Bloom), e mesmo que se possa afirmar que todos os escritores que depois curtiram com os cascos da sua labuta este mesmo chão lhe devem alguma coisa, não deixa de ser raro que em alguma livraria deste mundo entre um leitor disposto a levar tudo o que possa haver do Machado de Assis. Ainda se passaram umas horas. Só no dia seguinte, liguei ao livreiro com uma hipótese de solução para a inusitada de tão digna ocorrência literária. É que na véspera, o génio, que não era de recusar de elogios, foi mandado chamar para um desses jantares fora de horas, e que são motivo para se acordar alguém de um sono profundo, até mesmo aos tabefes, para lhe anunciar que os brindes nessa noite serão feitos todos em sua honra.

É sabido que um escritor pode esbanjar graça, ser de uma tonitruante espirituosidade, ter uma gaiola imensa e deitar as gotas necessárias de vinho na garganta de pássaros de cores e tons exacerbados e capazes de causar uma inflamação na vista dos deuses, se o não fizer numa dessas línguas que se falam nos tectos do mundo, é como estar na cozinha em frente aos tachos numas “rabugens de pessimismo”. Esses pragas proferidas entredentes são tidas como um azedume que ajuda ao refogado, variando entre salsa, pimenta ou açafrão, para puxar pela orelha o gosto a um prato que lá em cima se apreciará esteja ele mais ou menos picante. Assim, uma ventoinha posta a trabalhar no mundo das letras anglo-saxónico é a receita mais certa para estender um vendaval que reorganize as prioridades e as listas de leitura nas regiões periféricas e mesmo que diga respeito ao cânone dos indígenas.  

A matreirice, o engenho saltam séculos e hemisférios, não apanham pó e, quando burilados acima de toda a decência, furtando-se a qualquer compromisso moral, não envelhecem. É mais ou menos assim que começa o texto do romancista norte-americano Dave Eggers, que puxou bem as brisas e soltou um vendaval, ajudando a fazer da nova tradução de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” um surpreendente fenómeno, tendo a edição com o selo da Penguin Classics esgotado em pouco mais de um dia. Publicado originalmente em 1881, a primeira edição em inglês só chegaria sete décadas mais tarde, nos anos 1950, com o título de "Epitaph of a Small Winner", assinada por William Grossman. Assinada por Flora Thomson-DeVeaux, a tradução que surge agora é a quarta em inglês, e parece bem encaminhada para lançar, por fim, Machado de Assis para a estratosfera literária. Como notava Antonio Candido, “à glória nacional quase hipertrofiada de Machado de Assis, correspondeu uma desalentadora obscuridade internacional”. O titã da crítica literária brasileira explicou que a língua portuguesa permanece a menos influente das línguas do Ocidente, ainda que se use o argumento dos tantos milhões que a falam, Candido explica que os países onde é falada pouco peso têm hoje no plano político, e em 1900 esse peso ainda era menor. “Por isso ficaram marginais dois romancistas que nela escreveram e que são iguais aos maiores que então escreviam: Eça de Queirós, bem ajustado ao espírito do naturalismo; Machado de Assis, enigmático e bifronte, olhando para o passado e para o futuro, escondendo um mundo estranho e original sob a neutralidade aparente das suas histórias ‘que todos podiam ler’.”

Sendo a quarta tradução do romance que é considerado a inequívoca obra-prima do bruxo do Cosme Velho, esta edição é a primeira a ser publicada com notas explicativas, usadas tanto para justificar as escolhas de tradução como para contextualizar historicamente o leitor anglófono dos nossos dias face ao Brasil da segunda metade de oitocentos. A edição conta ainda com aquele prefácio assinado por David Eggers, um autor que tem visto alguns dos seus romances – “O Círculo” ou “Um Holograma para o Rei” – adaptados ao cinema, e que se junta assim a nomes como Woody Allen, Susan Sontag, Harold Bloom ou Philip Roth, que confessaram a admiração por Machado de Assis. E, como notava Abel Barros Baptista, um dos grandes especialistas actuais naquela obra, estas referências há muito pediam uma transfusão de sangue novo, pois já cansavam pela repetição. “O ensaio de Susan Sontag tem 25 anos. Woody Allen disse uma frase, ou pouco mais. E Bloom estende-se, porque, depois do livro em que arrola Machado nos génios periféricos, foi muito solicitado por jornais brasileiros. Nem sempre diz coisas aproveitáveis, por vezes parece que nem se lembra dos livros”, sublinhava Barros Baptista, e isto foi já em 2008, numa breve entrevista em que fazia um balanço do ponto de situação em termos da divulgação e estudo desta obra. “Em todo o caso”, adiantava, “Machado é conhecido nos meios académicos americanos, é estudado em programas de português e de estudos comparados, e há algum movimento de traduções. Sucesso generalizado não tem decerto, e aliás, que autor morto o pode ter nas condições actuais”.

O texto de Eggers, publicado no site da revista The New Yorker na quarta-feira, parece claramente ter feito saltar o grão que tem emperrado a divulgação de Machado de Assis, e se o fez foi porque não esteve a calcular friamente a aposta, mas avançou com todas as fichas, e estas formam uma torre imponente se se considerar que se trata de um dos romancistas mais exaltados pela crítica e com maior sucesso entre os leitores. “Há muito esquecido pela maioria, é um dos mais espirituosos, mais festivos e, portanto, um dos livros mais vivos e intemporais já escritos”, diz Eggers. O escritor norte-americano agarra um tufo da crina do alazão para fazer o pincel e nos dar um contorno rasgado, galopante, da destreza formal do génio brasileiro. Fala de um livro que provoca uma alegria inabalável ao leitor, diz que trata de uma história de amor, mas em cascata, porque o amor ali abre o leque e, de tanto dar com ele, acaba por desfazê-lo, diz que é uma comédia que trepa e levanta a saia à lógica das classes, que reflecte sobre uma nação e uma época, e depois deita aquele olhar inteiro sobre a morte, a ponto de fazê-la corar, e que assim contempla a própria mortalidade, formulando uma indagação inebriante sobre a própria ideia da narração. Na verdade, no original, Eggers nem tem de se esforçar tanto, porque fala aproveitando-se da convicção de uma língua que se leva muitíssimo a sério, ao passo que nós, nesta língua, temos sempre de puxar um pouco mais pelo lustro, e até Machado de Assis, que toda a sua vida gozou de uma popularidade sem igual, mas só no seu país, precisou de morrer, e de estar bem morto para ouvir sobre a terra os elogios afrouxarem um pouco as rédeas, e, assim, foi já depois do centenário, em 1939, como refere Antonio Candido, que ele se graduou: “Já não era mais o “ironista ameno”, o elegante burilador de sentenças, da convenção acadêmica; era o criador de um mundo paradoxal, o experimentador, o desolado cronista do absurdo.”
Quanto a esta nova tradução para o inglês, ocupou quatro anos da vida de Thomson-DeVeaux, sendo o resultado da sua tese de doutoramento pela Universidade de Brown, e Eggers, para quem a música da prosa de Machado é o segredo da receita, garante que o resultado é uma gloriosa dádiva para o mundo, porque tem aquela pressão íntima que ajuda a abrir numa explosão uma garrafa de champanhe, porque faz aquela espuma e brilho, porque têm um ânimo que canta, e diz-nos ainda que consegue captar o inimitável tom do autor com a impertinência do seu humor, ao mesmo tempo mordaz e melancólico, auto-depreciativo e romântico.

A seriedade e o empenho com que um selo norte-americano aposta na edição de um autor de outra língua é algo que não tem paralelo no nosso mercado onde a norma é as traduções e os autores de língua estrangeira provocarem aos nativos um certo ressaibo. Basta notar que, com excepção de uns poucos autores nacionais promovidos de forma insistente e despudorada, recorrendo às usais banalidades de base, e que constituem aquele lote dos que se deixam vender por atacado, e que não demoram senão uns segundos a fazer a mala e partir para um qualquer destino, em cascos de rolha ou um pouco ao lado, hoje, quase não se tem, no nosso país, uma ideia, mesmo que vaga, do que sejam as linhas com que se cose a narrativa portuguesa nestas duas décadas do século XXI. Pelo contrário, nos mercados anglófonos há uma resistência a obras traduzidas que é explicada pela tradição de altanaria anímica e cultural desses países. Thomson-DeVeaux referia à revista “Quatro cinco um”, que existe um percentil que se tornou famoso no mercado editorial norte-americano: 3%. “Este é o percentual de obras publicadas nos EUA que são traduções.” O crivo é, por isso, muito mais apertado. Mas a tradutora deixava uma nota esperançosa meses antes da sua tradução ser publicada, referindo que a cada novo ciclo de traduções o interesse por Machado de Assis parecia renovar-se, e, numa altura em que as discussões sobre discriminação racial subiram muitíssimo de tom, com o homicídio de mais um negro às mãos das forças policiais nos EUA, este é um momento particularmente propício a um esforço que tente fazer justiça a esses vultos de estatura internacional que foram relegados para a periferia do cânone da literatura universal. Mas se a chegada de “The Posthumous Memoirs of Brás Cubas” ao mercado norte-americano ganhou o embalo de um vento favorável, seguindo-se já ao lançamento, em 2018, da reunião dos contos em “The collected stories of Machado de Assis”, traduzidos por Margaret Jull Costa e Robin Patterson, como Benjamin Moser referiu então nas páginas da The New Yorker é improvável que o autor gostasse de se ver apresentado, mesmo que isso agora resulte a seu favor, como “o neto de escravos”, e isto numa sociedade que só quando ele tinha perto de 50 anos determinou a abolição da escravatura. Podia dizer-se que, em seu entender, a vantagem do tempo é que este opera como “um químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias morais”. Mas o certo é que este filho de uma lavadeira açoriana e de um mulato, pintor de tectos de casas e igrejas, que além de gago terá sofrido episódios de epilepsia, não poucas vezes foi acusado de cobardia, de ter tentado igualar-se a outros, e fazer esquecer a nota a mais de café no seu leite, superando o complexo racial, ao levar uma vida o mais discreta possível, para que lhe perdoassem também os dotes excessivos de lucidez e inteligência. De resto, esta manobra de camuflagem social, esta miragem que projectava de forma aparentemente inócua mas, afinal, desmistificadora e até corrosiva, é precisamente aquilo que Antonio Candido reconhece como os traços essenciais da sua obra: “A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida (como os ironistas do século XVIII); ou em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial; ou em sugerir, sob aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro. Aí está o motivo da sua modernidade, apesar de seu arcaísmo de superfície.”

O crítico fala não só na normalidade exterior da vida de Machado de Assis, como recusa a ideia de que ele enfrentou grandes preconceitos na sua vida pública. “Tipógrafo, jornalista, funcionário modesto, finalmente alto funcionário, a sua carreira foi plácida. A cor não parece ter sido motivo de desprestígio, e talvez só tenha servido de contratempo num momento brevemente superado, quando casou com uma senhora portuguesa.” Mas se, antes dos 60 anos, Machado de Assis era já visto como um patriarca das letras, e se foi a escolha óbvia para presidir à Academia Brasileira de Letras desde a sua fundação e tendo permanecido no posto até à sua morte, ao contrário do processo que se tem levado a cabo nos nossos dias para deitar ainda mais café no leite deste mulato, ao longo dos anos, e na vertigem necessária de dar cabo do pai – e aqui recordemos a máxima de León Chestov: “Obedece-se, na vida literária, ao costume dos naturais da Terra do Fogo: os jovens matam e comem os velhos.” –, as recolhas dos testemunhos de outros escritores sobre Machado de Assis revelam que, se nunca lhe faltaram admiradores, houve também outros génios que não o pouparam àquele tipo de críticas que se alojam como vermes, não já entre as carnes frias do cadáver, mas na substância etérea do fantasma. Jorge de Lima, o autor de o mais genial dos longos poemas escritos nesta língua no século passado, “A Invenção de Orfeu”, via nele “um homem esquivo e misantropo a seu jeito, incapaz de frequentar porões revolucionários em que se conspirasse contra o regime”. E, na comparação com outro grande escritor também mulato, Lima Barreto, era frequente Machado de Assis ficar por baixo, como acontece num artigo de Rachel de Queiroz: “Sendo justamente ambos mulatos, em ambos o complexo racial foi o fator preponderante de sua grandeza e de sua tragédia. Machado, mais egoísta, mais forte intimamente, de certa maneira mais implacável, conseguiu aparentemente vencer, superar o complexo […]. Jamais tratou de criar o seu lugar ao sol como homem de cor que o era. Procurou conseguir, e realmente conseguiu fazer com que, em virtude dos seus méritos excepcionais, o Brasil inteiro lhe ignorasse a cor […]. Já com Lima Barreto, o caso foi muito outro. Ele queria se impor como negro, como mulato; e não ‘apesar’ de mulato. Como figura humana, por isso mesmo se eleva muito acima de Machado de Assis”.

Outros exemplos, igualmente veementes nesta linha de acusação e que a revista “Quatro cinco um” levantou na recolha “Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares”, de Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn, são o de Jorge Amado e João Guimarães Rosa. O primeiro tem uma opinião assassina, afirmando que “custou-lhe esforço para chegar a branco e a expoente das classes dominantes, mas tendo lá chegado não abriu mão de nada a que tinha direito”. Ao passo que o segundo, deixa de lado as questões morais, e aponta a artificialidade que lhe impregnou a prosa: “Não pretendo mais lê-lo, por vários motivos: acho-o antipático de estilo, cheio de atitudes para ‘embasbacar o indígena’; lança mão de artifícios baratos, querendo forçar a nota da originalidade; anda sempre no mesmo trote pernóstico, o que torna tediosa a sua leitura. Há trechos bons, mas mesmo assim inferiores aos dos autores ingleses que lhe serviram de modelo”.

Mas aquele mesmo artigo da autoria de Mauricio Puls refere que o trabalho de recolha e estudo da actividade de cronista de Machado de Assis tem ajudado a lavar a imagem deste “medroso” homem de letras, “revelando – nas palavras de Joel Silveira – ‘um novo Machado, homem do seu tempo e do seu mundo, partícipe de controvérsias, jornalista de combate e cidadão de atitude clara em face dos mais importantes problemas do Brasil de sua época. Não se diga mais que ele foi indiferente ao abolicionismo e à República. Não o foi, prova a vasta documentação (artigos principalmente, por ele publicados) recolhida por Magalhães Júnior’”.

Voltando ao prefácio de Dave Eggers, é só no final do texto que este dá uma imprevista e genial estocada na besta celerada da produção literária contemporânea, e, com isso, de forma imensamente astuciosa relança o vulto de Machado de Assis como presença inquietante que tem ainda muito a dizer ao futuro. Eggers refere que há uns anos foi convidado para integrar o júri de um prémio literário para escolher o romance do ano, e diz que, embora a tarefa se tenha revelado bastante gratificante, dos quatrocentos e tal romances americanos que o comité teve de apreciar, havendo entre eles obras “brilhantes”, só numa parca dúzia deles se encontravam os elementos que permitem falar num romance com piada, ou com esse engenho desassombrado que é capaz de se pôr a brincar com o leitor… “E apenas encontrei dois que podiam ser considerados de forma significativa romances experimentais.” Assim, e generalizando muito para lá desta experiência, Eggers nota como hoje, por qualquer razão estranha – “muito estranha mesmo” –, “vivemos em tempos de profundo tradicionalismo na literatura”, e este tipo de exasperante (e às vezes exasperado) conformismo arrisca-se a tornar-se o traço mais saliente das narrativas do nosso tempo, um sinal de formas de condicionamento que levam a que o arcaísmo de Machado de Assis nos surja como algo bruscamente moderno, resgatando mesmo as tendências de vanguarda que marcaram o século XX e que ele, em grande medida, prenunciou.

E vale a pena recordar como, na nota que dirige ao leitor, no começo das suas memórias póstumas, Brás Cuba reclama o exemplo de Stendhal, referindo-se ao pasmo e consternação que produziu o facto de este ter confessado que havia escrito um dos seus livros para que este chegasse a cem leitores. Ora, o defunto autor admite que o seu livro nem os cem leitores de Stendhal, mas apenas a metade disso possa ter. E, se calhar, vinte até seriam muitos, pois possivelmente nem dez mas só cinco leitores poderá ter. A primeira publicação do livro ocorreu “aos pedaços” na Revista Brasileira, e é de duvidar que Machado de Assis, até pelo favor que recolhia entre os seus pares desde a sua juventude, pudesse falhar tão espectacularmente. Mas o certo é que soube inventar esse engenho literário que é escrito como uma anedota dividida em muitas partes, uma coisa que se conta na esquina, prendendo o ouvido a cinco de cada vez. Com a língua posta a arejar, com o vernáculo em malabarismo no trapézio, ele até pode contar sobretudo com o gozo que parece simples do fragmento, da nota elíptica, indo e voltando para intervir na narrativa com “bisbilhotice saborosa” (Antonio Candido, uma vez mais). Há um vigor enorme no modelo que ele propôs, uma fabulosa descongestão que nos atinge em cheio, trazendo alento face à bisonhice das letras. Assim, por um momento, este gago e epiléptico, puxa pela maior das ironias, coroa a banalidade, e, afinal, dá um tareão descomunal a todo esse bando de tagarelas investidos da seriedade dos seus grandes romances cheios de virtudes morais e tal. Às vezes tém de ser o palhaço a grande figura trágica, esse que recorda a dimensão reveladora de uma boa piada, esse que rasga um sorriso sobre a máscara de seriedade do nosso tempo, e que se serve de um tom caprichoso, estreitando as coisas, desferindo o seu golpe à queima-roupa, lembrando que tudo começa como uma brincadeira, mas que, “palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução”. E que há alguns até que dizem “que assim é que a natureza compôs as suas espécies”.