“Estou a pensar na possibilidade de deixar Nova Iorque e ir viver para Portugal”

Assiste com preocupação ao ‘declínio e queda do Império Americano’ e por isso pondera mudar-se para o nosso país, onde tem muitos amigos. Leitor ávido, o seu mais recente livro publicado em Portugal reflete acerca da possibilidade de ler obras de arte como se fossem textos.

Alberto Manguel tinha seis anos quando viu no Palácio dos Doges, em Veneza, uma pintura de uma batalha que o impressionou profundamente. «Ainda hoje me aparece em sonhos», revela-nos. Terá começado aí uma longa e íntima relação com a arte e os seus mistérios. Mas ainda em criança viveria outra experiência marcante. «Tinha nove ou dez anos, e uma tia, que era pintora, convidou-me para o seu ateliê para ver onde trabalhava. Era verão em Buenos Aires, quente e húmido. A pequena divisão estava fresca e cheirava maravilhosamente a terebintina e óleo;_as telas arrumadas, encostadas umas às outras, pareceram-me livros deformados […]. Numa estante baixa encontravam-se grandes volumes de reproduções a cores, a maioria publicada pelo grupo suíço Skira, que para a minha tia era sinónimo de excelência. Tirou o volume dedicado a Van Gogh, sentou-me num banquinho e pousou o livro nos meus joelhos».

Os livros, sempre os livros. Manguel, que diz ter aprendido a ler logo aos três anos e que ao longo da vida reuniu uma biblioteca com dezenas de milhares de volumes, não é capaz de viver sem eles. Por isso, mesmo quando se fala de arte, o seu paradigma é o da leitura._Em Ler Imagens, recentemente publicado em Portugal pelas Edições 70, propõe uma abordagem a pinturas e fotografias como se fossem textos. Para isso, foi buscar algumas das suas imagens favoritas e através delas conta-nos histórias extraordinárias, como a dos Gonsalvus, família do século XVI_que sofria de hipertricose – uma doença congénita que cobre de pelos o corpo todo, inclusive a cara e as mãos, também conhecida como síndrome do homem-lobo – e que passou pelas cortes de Henrique II, Rei de França, e do «melancólico imperador Rudolfo II, que, enclausurado no seu palácio em Praga, reunira à sua volta muitos dos mais importantes artistas e eruditos do seu tempo para que lhe trouxessem novidades do mundo exterior».

A erudição de Manguel é prodigiosa, por isso as suas incursões pelo mundo da arte assemelham-se a labirintos que a todo o momento nos reservam surpresas – e nunca se sabe onde podem levar-nos.

«Por muito que goste de ler palavras, adoro ler imagens e gosto de encontrar histórias explícita ou implicitamente entretecidas em todos os tipos de obra de arte», confessa-nos nas primeiras linhas de Ler Imagens. Foi isso que tentou fazer ao longo de doze capítulos, onde nos propõe uma espécie de visita guiada por lugares imprevistos.

Não estava à espera que, num livro em que se propõe a ler imagens como se lê um texto, tenha decidido começar por uma pintura abstrata. Isso foi uma espécie de desafio que colocou a si próprio: tentar ler uma imagem que, por definição, se recusa a ser lida?

Uma imagem que representa alguma coisa obviamente está a pedir para ser lida. Eu queria tentar perceber se uma imagem que explicitamente não quer representar nada também o pode ser. A minha conclusão é que não pode. Nós abordamos as imagens (artificiais ou naturais) com uma tal bagagem de impulsos interpretativos que um olhar neutro é impossível. E o que veríamos se não trouxéssemos essa bagagem? É como se perguntássemos o que podemos pensar fora dos nossos pensamentos ou o que conseguimos saborear se não tivermos língua.

Falando ainda de pintura abstrata: acha que podemos relacionar o seu aparecimento com as desilusões, o ceticismo, a falta de fé (não apenas religiosa, mas também na beleza ou na bondade) que marcam a história do século XX?

Essa foi certamente a intenção [dos criadores de pintura abstrata]: resgatar as imagens do impulso narrativo, burguês, religioso ou outro. A primeira sugestão desta ideia que consigo encontrar aparece em Museu, do Cardeal Borromeu [1538-1584], em que, falando de Ticiano, ele nota que o pintor atingiu «um efeito impressionista» não da maneira laboriosa dos artistas visuais do tempo do Cardeal mas através da «combinação dos materiais em bruto, incluindo o campo pictórico, o verniz, a tela, e certas cores naturais»: ou seja, não a representação, mas a impressão abstrata. Talvez Bergotte, a personagem de Proust em A Prisioneira [quinto volume do romance em Busca do Tempo Perdido], tenha sido o primeiro a apreciar uma secção abstrata de cor por si, o «pequeno pedaço de parede amarela» na Vista de Delft de Vermeer que era «uma beleza que se basta a si mesma».

Muitos historiadores da arte insistem que a obra contém em si as respostas para todas as perguntas e por isso rejeitam aquilo a que chamam a ‘petite histoire’, a anedota histórica. O seu livro conta-nos muitos episódios curiosos, como aquele em que um amigo de Cézanne é acometido por uma violenta diarreia, e o pintor dá-lhe uma das suas mais belas aguarelas para se limpar. Há quem ache estes episódios triviais ou meras distrações. Acredita, pelo contrário, que eles podem ajudar a iluminar a obra ou a personalidade de um artista?

Acredito que todas as artes devem ser anónimas: que uma imagem, texto ou trecho de música devem valer por si, desembaraçados das datas e dos nomes dos autores, entrando num diálogo a sós connosco, sem ninguém a espiar ou a bisbilhotar por perto. Esse desejo não é possível de realizar. Nunca chegamos a uma obra de arte num estado virgem. As nossas circunstâncias históricas e pessoais, as fofocas culturais, modas e erudição contaminam a nossa relação com a arte. Nunca há uma ‘primeira vez’. Quando abrimos o nosso primeiro D. Quixote já levamos connosco a imagem do cavaleiro e do seu escudeiro; quando olhamos para uma imagem já temos conhecimentos convencionais de forma, cor e conteúdo. Contar essas anedotas pode não necessariamente iluminar a nossa visão da imagem, mas ajuda-nos pelo menos a termos consciência dos nossos preconceitos.

(…)

Depois de décadas a viver no estrangeiro [Canadá, França, Estados Unidos], regressou à Argentina para assumir o cargo de diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires. No entanto, deixou a direção da Biblioteca em 2018. Acha que escolheu uma boa altura para regressar ao país onde nasceu?

O tempo o dirá. Não me parece que possamos viver sempre a pensar ‘será este o momento certo?’. Se assim fosse não daríamos um passo nem fazíamos nada. Como podemos ter a certeza? A minha vida tem sido guiada pelo acaso, e não tenho ideia de por que motivo faço o que faço. Neste momento, vejo o declínio e queda do Império Americano, revelando despudoradamente os seus preconceitos subcutâneos mais odiosos. Estou a pensar na possibilidade de deixar Nova Iorque e ir viver para Portugal (se Portugal me quiser) porque o acaso me colocou no caminho pessoas maravilhosas em Portugal que se tornaram amigos muito queridos. Mas será este o momento certo? Não tenho assim tantos anos para fazer mudanças, por isso espero que, seja qual for a decisão que tomar, não venha a arrepender-me dela, porque aí já será demasiado tarde para voltar atrás.

Já deu alguns passos para se mudar para Portugal, como procurar uma casa para viver?

A mudança para Portugal é algo em que estou a pensar, vendo a degradação dos Estados Unidos, mas ainda nada está decidido.

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