O PCP de ‘olhos em bico’…

Sentindo-se desamparado por Moscovo, o PCP deixou-se de pruridos ideológicos e tentou a sorte no ‘regaço’ de Pequim

Volvidas três décadas sobre a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, a sobrevivência ativa do PCP é uma singularidade no contexto europeu, onde os principais ‘partidos irmãos’ se eclipsaram, tornando-se residuais ou diluídos em diferentes formações.

O declínio do PCP também parece anunciado, de eleição em eleição, legislativas ou autárquicas – e, nestas, com a derrocada de alguns dos seus bastiões emblemáticos.

Por muito que o PCP queira disfarçar as fraquezas – ou ‘reciclá-las’ –, a realidade é que a sua influência já conheceu melhores dias, como é confirmado pelo ‘emagrecimento’ dos votos nas urnas.

E seria pior se os comunistas não fossem ainda beneficiários de uma rede de cumplicidades bem lubrificada, designadamente em algumas redações de órgãos de comunicação social que alimentam o mito, embora a ‘migração’ para a órbita do BE (mais ao jeito dos jovens urbanos do que os ‘históricos’ do PCP, vistos sem ‘pedigree’ intelectual) tenha feito alguns estragos.

De facto, o PCP já não pode contar hoje, de uma forma irrestrita, com os media, que controlava a seu bel-prazer durante o PREC, entre 1974 e 1975 – com relevo para a ocupação do Diário de Noticias, sob a égide de Saramago –, enquanto o Bloco tem outras mágoas e olha, com fraternal inveja, para o vizinho Podemos, de Pablo Iglésias, por este ter conseguido sentar-se à mesa do Governo em Madrid, desiderato que os bloquistas sonhavam para Lisboa.

Embora consciente das suas fragilidades, o PCP não desarmou – e, sentindo-se desamparado por Moscovo, achou que o melhor era deixar-se de pruridos ideológicos e traçar um novo destino, tentando a sorte no ‘regaço’ de Pequim.

Cunhal morreu fiel às convicções, no ocaso do ‘Sol da Terra’ que fora o seu farol de vida, e os sucessores agarraram-se ao que puderam para se convencerem de que o ‘credo’ tem futuro.

A dupla ‘orfandade’ empobreceu a narrativa do partido, acossado à esquerda pelos bloquistas, seus diretos concorrentes, virados para as causas ‘disruptivas’ e fraturantes, um território que lhe é menos propício.

Por isso, a discreta mudança de paradigma aproximou o PCP do ‘realismo’ chinês, já esquecido da descaridade com que tratou os maoistas, de cujas fileiras saíram nomes tão sonantes como Maria José Morgado, Ana Gomes ou Durão Barroso.

Nos ardores revolucionários pós-25 de Abril, e até mais tarde, era impensável que um membro do Comité Central do PCP assinasse um texto em defesa de Pequim, como agora aconteceu com Gustavo Carneiro, jornalista e dirigente comunista, que saiu da sombra para negar a repressão em Hong Kong – que, segundo ele, «nunca ocorreu», acusando os media de denegrirem a China e de ignorarem o seu «fabuloso desenvolvimento».

O artigo apareceu no Avante!, prova de que a ‘verdade a que têm direito’ voltou a sair do tinteiro, com a novidade das ‘dores’ de Pequim terem substituído as de Moscovo na retórica do jornal…

Em causa está agora a neutralização do estatuto semiautónomo de Hong Kong, através da aplicação ao território da chamada ‘Lei de Segurança Nacional’, que reacendeu os protestos e as manifestações pró-democracia – algo que o PCP, admirador confesso de um sortido de ditadores, não pode em coerência tolerar.

Na ressaca da ‘peste chinesa’, que embaraça os governos ocidentais, Xi Jinping, investido em Presidente vitalício da China, aproveitou a ‘janela de oportunidade’ para arrumar a casa em Hong Kong, depois de lançar paulatinamente a ‘Nova Rota da Seda’, um ambicioso projeto do qual a Rússia também é parceira.

É, afinal, o reforço de uma estratégia global numa lógica tripolar — onde a Europa não conta, com a agravante de estar em aflições perante a erosão provocada pelo vírus de Wuhan nas economias da União.

Se pensarmos, entretanto, na expansão do investimento chinês em Portugal nos últimos anos – envolvendo a energia, a banca, os seguros, os media, o turismo e, até, a saúde –, percebe-se melhor o novo posicionamento do PCP, moldando-se à moda ‘prêt-a-porter’ ditada por Pequim.

Recorde-se, a propósito, que, pelo menos desde 2005, a China tem sido o destino regular de delegações amigas do PCP, sob variados pretextos, e que em 2019 os deputados comunistas recusaram no Parlamento um voto de pesar pelo massacre de Tiananmen.

São sinais inequívocos de que o PCP, dantes rendido ao ‘capitalismo de Estado’ soviético, já não é insensível ao modelo inventado por Deng Xiao Ping – ‘um país, dois sistemas’ –, uma fórmula que combina o capitalismo feroz com a ditadura política controlada pelo partido.

Afinal, são todos comunistas. Seja o ‘sultanato’ da Coreia do Norte, as ‘dinastias’ de Cuba ou da Venezuela, ou a pujante China imperial. O PCP acautela o futuro… de ‘olhos em bico’.