EUA. Brutalidade à vista de todos

Enquanto o país fervilha de fúria pela morte de George Floyd, Trump é acusado de deitar achas para a fogueira.

Cada vez mais norte-americanos saem à rua, furiosos com o racismo e brutalidade policial, unidos pelo homicídio de George Floyd, estrangulado pelo joelho de um polícia. A resposta das autoridades não ajuda: multiplicam-se as imagens de abusos policiais, por todo o país.

Desde o vídeo de uma mulher caída nas ruas de Hollywood, cercada por oito polícias, parecendo ser atingida por tasers; uma multidão de polícias, em Brooklyn, a espancar quem encontravam à frente; até imagens de um homem de 75 anos a ser empurrado pela polícia de Buffalo, que continua avançar, ignorando-o, enquanto um manifestante gritava: «Ele está a sangrar do ouvido!». Entretanto, carros da polícia foram filmados a acelerar contra a multidão, tanto em Los Angeles como em Nova Iorque. «Acredito que a polícia de Nova Iorque agiu adequadamente», disse o presidente da Câmara, Bill de Blasio, reagindo às imagens – em 2013 fora eleito prometendo reformas estruturais na polícia.

«Isto não é mais que a confirmação do que ativistas negros dizem há décadas, que os abusos policiais e a utilização excessiva de força são reais», garantiu Najee Ali, um ativista veterano do sul de Los Angeles. «Agora, com o alastrar das redes sociais, com toda a gente a ter um telemóvel, podemos de facto documentar o que sentimos ser um abuso», explicou ao Los Angeles Times. «Finalmente temos provas».

Talvez o mais chocante seja a facilidade com que os agentes poderiam ter escapado a consequências se não tivessem sido filmados. Em Buffalo, na quinta-feira, um comunicado da polícia explicava que o homem de 75 anos, um ativista pela habitação que teve de ser hospitalizado, tinha «tropeçado e caído», durante uma «escaramuça envolvendo manifestantes», alguns dos quais foram detidos – a verdade só veio à tona com os vídeos da NPR.

Já em Filadélfia, Evan Gorski, um estudante de engenharia de 21 anos, foi detido durante dois dias, acusado de agredir um polícia. Afinal, estava apenas a participar pacificamente num protesto, sendo subitamente agredido na cabeça com um cassetete e atirado para o chão por dois polícias, mostram as imagens, divulgadas nas redes sociais – que levaram à libertação de Gorski, esta quarta-feira.

«Eles simplesmente começaram a bater nas pessoas. Foi escalada na violência bizarra, surgiu do nada. A polícia simplesmente ficou maluca», contou Matthew VanDyke, um antigo realizador de documentários que filmou o sucedido. «Já estive em muitas zonas de conflito. Mas nunca vi nada assim na América, com os meus próprios olhos», garantiu ao Philadelphia Inquirer.

Poderia argumentar-se que a polícia norte-americana, fortemente militarizada, não tem o treino adequado para lidar com manifestantes, de maneira a diminuir a tensão. Mas importa lembrar como a situação foi tão diferente durante as enormes manifestações contra isolamento social, há menos de um mês: em geral, a avaliação da resposta policial oscilou entre considerá-la exemplar ou demasiado leniente.

«Permitiram que manifestantes brancos, fortemente armados, tomassem de assalto capitólios estatais para protestar pelo direito de ir ao ginásio ou cortar o cabelo», recordou no Twitter o African American Policy Forum. «Mas quando pessoas negras protestam, em defesa da nossa humanidade, somos alvo de gás lacrimogéneo e deparamo-nos com violência estatal».

«Só quero apontar que num protesto contra a brutalidade policial os polícias não são uma força de segurança, são contra-manifestantes», tweetou Carvell Wallace, colunista da New York Times Magazine. «Talvez essa perspetiva ajude os vossos entes queridos a compreender o que estão a ver».

 

Uma geração diferente

Por mais que Robert O’Brien, conselheiro de Segurança Nacional, diga à CNN que o único problema são «umas poucas maçãs podres, como o agente que matou George Floyd», e que «não há racismo sistémico», muitos estão cada vez menos convencidos. E já não é apenas a comunidade negra, que se queixa há tanto tempo de descriminação: estes protestos são muito mais interraciais que no passado (ver as páginas 12 a 15 do b,i.)

«Hoje, os jovens tem amigos que são negros, amigos que são gays e amigos que são transexuais. Vêm, em tempo real, como estes amigos são tratados de forma diferente na sociedade e podem estar em perigo», explicou Rashawn Ray, professor de Sociologia na Universidade de Maryland, ao Washington Post.

«Esta geração é muito diferente das anteriores», notou Kennedy Calamese, de 17 anos, que se juntou aos protestos em frente à Casa Branca, com a mãe e os irmãos. «É um caldeirão cultural. É muito inspirador, porque todos começaram a ver como isto não é ok», garantiu ao jornal norte-americano, impressionado com a diversidade da multidão.

«Sentíamo-nos simplesmente impotentes, sentados em casa a ver o que aconteceu aqui», explicou a mãe de Kennedy, Leslie Calamese. Referia-se à expulsão de manifestantes pacíficos, com helicópteros, disparos de balas de borracha e gás lacrimogéneo, para abrir caminho a Donald Trump até uma Igreja, onde posou com a Bíblia na mão, esta segunda-feira.

Até esse momento, Leslie Calamese tinha tido medo de expor a família ao perigo. «Vamo-nos embora bem antes do recolher obrigatório, mas achei que era importante para eles experienciarem isto», explicou.

 

‘Dominar as ruas’

Quem acha que a polícia já é excessivamente militarizada não ficará mais tranquilo com as declarações de Trump, que prometeu lançar na refrega as forças armadas. Aliás, foi gravado a exigir aos governadores que pedissem intervenção da Guarda Nacional, repetindo que o objetivo é «dominar as ruas».

O Presidente até já se refere publicamente a manifestantes como «terroristas», tendo sugerido o uso «tanques», contaram fontes no Pentágono ao Daily Beast – não ficou nada satisfeito com a notícia de que se escondeu num bunker no fim de semana, quando os protestos aqueceram em redor da Casa Branca. Entretanto, foram detidas mais de 10 mil pessoas, segundo a Associated Press, e pelo menos 17 mil soldados foram colocado no terreno, levando até oficiais de topo a expressar descontentamento.

O Presidente «deixou a nu o seu desdém pelos direitos de manifestantes pacíficos neste país», escreveu o almirante Michael Mullen, na Atlantic. «A América não é um campo de batalha. Os nossos concidadãos não são o inimigo», tweetou o general Martin Dempsey. Mas talvez o golpe mais duro sejam as críticas do general Jim ‘Mad Dog’ Mattis, antigo secretário da Defesa de Trump, altamente respeitado nos círculos republicanos.

«As palavras ‘justiça igual aos olhos da lei’ estão gravadas na entrada do Supremo Tribunal. É isto precisamente que os manifestantes estão a exigir», lembrou Mattis, em declarações à Atlantic. «Não nos devemos distrair com um pequeno número que quebra a lei. Estes protestos são definidos por dezenas de milhares de pessoas, que insistem que cumpramos com os nossos valores».

O Presidente não parece ter tomado nota: na sexta-feira, enquanto o país ardia, seria acusado de deitar mais lenha na fogueira. Apesar de tantos estarem de luto por George Floyd, fez questão de marcar uma conferência para anunciar uma descida de 1,4% na taxa de desemprego, no mês de maio – enquanto a taxa de desemprego negra se manteve praticamente na mesma. «Esperemos que o George esteja a olhar para baixo neste momento, e a dizer: ‘Isto é um grande acontecimento para o nosso país’», mencionou Trump. «É um grande dia para ele, um grande dia para todos. Este é um grande dia para todos».