Estados Unidos. O velho racismo que nunca desapareceu

Primeiro escravatura, depois segregação, agora encarceramento em massa. O movimento negro teve de adaptar-se ‘a novas circunstâncias, onde entram em jogo as velhas linhas divisórias’, diz Enid Logan.  Um método é agitar as ruas,  para ‘parar o funcionamento normal da máquina’, explica Komozi Woodard.

Estados Unidos. O velho racismo que nunca desapareceu

Caso caminhe pelas ruas do sul de Mineápolis, epicentro dos protestos pelo homicídio de George Floyd, a comunidade negra que encontra pode ter as mais diferentes origens. Os antepassados distantes de uns poderão ter escapado da escravatura no sul, outros podem ter vindo na Grande Migração depois da Guerra Civil. Boa parte chegou nas últimas décadas, saídos do chamado Cinturão da Ferrugem, de antigos centros industriais como Chicago ou Indianápolis, outros vieram como refugiados de países como a Somália. Mas todos têm uma experiência comum, garantem os manifestantes que hoje enchem as ruas americanas, furiosos: viveram o racismo sistémico e a brutalidade policial que nunca deixou de ser regra no país –algo sempre contestado pelo movimento negro.

«Sempre houve uma consciência negra na América, as pessoas negras sempre estiveram politicamente conscientes, organizadas», explica ao SOL Enid Logan, professora de Sociologia e Estudos Afroamericanos na Universidade do Minnesota. «Significa algo que tudo isto se desenrole numa América que recentemente teve oito anos de uma presidência negra. Cujo rescaldo foi a subsequente eleição de uma Presidente abertamente supremacista branco, em resposta», considera Logan, estranhando os ziguezagues da História. E salientando: «As nossas consciências (no plural) de opressão são múltiplas e em constante mudança. Como tiveram de ser, para se adaptar a novas circunstâncias, onde entram em jogo as velhas linhas divisórias».

Lá que as divisões raciais nos EUA são antigas são. «A brutalidade policial tem raízes no facto das esquadras da polícia na América terem origem nas patrulhas para capturar escravos fugitivos!», lembra Komozi Woodard, professor de História na Universidade Sarah Lawrence, em Nova Iorque. Mesmo após o fim da Guerra Civil, que acabou com a escravatura, em 1865, estes mecanismos não desapareceram. «Um sistema legal separado, baseado nas leis de Jim Crow, foi desenvolvido para pessoas negras. Até certo ponto, vestígios desse sistema dual estão entranhados nos sistemas policiais e judiciais de cada estado», considera o professor, autor de livros como A Nation within the Nation ou Women in the Black Freedom Struggle. Aliás, não foi assim há tanto tempo que se acabou com estas leis: foi apenas com o culminar do movimento dos direitos civis, após o assassinato do seu líder, Martin Luther King, em 1968. Enquanto a polícia de choque e a Guarda Nacional era lançada nas ruas, os gigantescos protestos e motins que se seguiram, exigindo o fim do racismo, justiça e mudança, marcaram um ponto de inflexão na história norte-americana. «Em última análise, os motins são a linguagem dos sem voz», dissera anos antes MLK. 

«O que é que a América não conseguiu ouvir?», questionara.

Qualquer semelhança com a atualidade não é coincidência. «Para os grupos oprimidos, há pouco acesso às alavancas financeiras do poder. E, infelizmente, o voto é frequentemente nulificado pelo racismo burocrático e pela alienação do sistema de dois partidos», explica Woodard. «Como tal, os protestos – e, essencialmente, a disrupção – são uma grande alavanca de poder, articulada pela política de rua. A disrupção procura parar o funcionamento normal da máquina política e legal; a disrupção bem-sucedida pode ser pacífica ou violente. Ou pode ser uma combinação engenhosa dos dois».
São momentos que podem mudar, subitamente, toda a psique coletiva de uma nação. «Hoje não há moderados. Todos são militantes. A diferença é entre os que constroem e os que queimam», descrevia Whitney Young, líder da National Urban League, uma organização pelos direitos dos negros, conhecida pela capacidade de compromisso com Washington. Nesses dias turbulentos de 1968, os conflitos e discussões entre Young e líderes mais radicais, como Hubert Gerold Brown, conhecido como Rap Brow, ficaram para trás das costas. «Se pensam que não estou tão furioso como o Rap Brow, então interpretaram-me mal. Simplesmente não sou um tolo. Não vou dar-lhes a desculpa de matarem todos os negros com as novas armas que têm».

Construção de consciência
Na altura, não era apenas a segregação que aquecia a panela de pressão. Eram os tempos da guerra do Vietname, onde morriam uns 45 norte-americanos por dia. À primeira vista, era algo que parecia ter pouco a ver com o racismo contra negros. Contudo, os norte-americanos mortos e feridos na guerra eram desproporcionalmente afroamericanos: Dificilmente conseguiam sair do país para fugir ao recrutamento e recebiam as tarefas mais perigosas na linha da frente. Mais uma vez, qualquer semelhança com a pandemia de coronavírus, que também mata desproporcionalmente negros, que em média têm muito menos acesso a saúde que brancos, não é pura coincidência. Mas claro que há grandes diferenças entre 1968 e 2020.

«Uma diferença fundamental é que estes levantamentos urbanos são inter-raciais. Em 1968, esses levantamentos produziram consciência negra; estes estão a produzir uma consciência progressista», afirma o historiador de Nova Iorque. «O que pode estar a mudar hoje é o grau em que brancos e outros aliados não-negros estão dispostos a denunciar, de forma séria e sustentada, as antigas e duradouras formas de repressão, controlo, exploração e violência que as pessoas negras têm sido sujeitas», concorda a professora de Minneapolis. 

É que, entretanto, «a cultura do Hip-Hop e o Black Lives Matter produziram um novo senso comum que tem um alcance global», acrescenta Woodard. «O paralelo mais próximo seria o movimento Black Panther e as suas articulações internacionais». Aliás, por todo o mundo, de Londres a Sydney, multiplicam-se as manifestações devido à morte de George Floyd. Por um lado, são demonstrações de solidariedade com o sofrimento dos negros nos EUA – por outro, são protestos contra as disparidades nos seus próprios países, sejam sofridas pelos aborígenes na Austrália ou pelos filhos do Império Britânico, no Reino Unido.

«Há paralelos significativos e perturbadores entre a experiência negra britânica e afroamericana», assegurou o rapper britânico George the Poet. «40% dos agregados familiares mais pobres neste país são negros, quando só 4% da população é negra. Pessoas negras representam metade de todos os jovens na prisão, neste momento», lembrou, em entrevista à BBC, recordando os seus amigos infância espancados pela polícia, um colega da escola que foi morto por agentes, que não sofreram qualquer condenação. «É trágico que 60 ou 70 anos depois do movimento dos direitos civis na América, ainda precisemos de educar e sensibilizar toda a gente», lamentou.

Gritar para as ruas 
Para muitos, o ideal seria que o culminar dos atuais protestos fosse semelhante ao de 1968, «quando a Urban League de Whitney Young e a Casa Branca do Presidente Lyndon Johnson aproveitaram a violência nas ruas para empurrar a histórica legislação dos direitos civis através do Congresso», considera Woodard. O Presidente já tinha feito algo semelhante em 1995, quando ativistas pelos direitos dos negros marcharam no coração do sul, entre Selma e Montgomery, pelo direito a votar: foram atacados e brutalmente espancados pela polícia estadual, com apoio de uma multidão branca. Contudo, há pouca esperança de que Donald Trump siga o exemplo de Johnson. Em vez disso, a meses das presidenciais de novembro, Trump optou por consolidar a sua base conservadora cristã, com uma dura posição de «lei e ordem» – tão semelhante à de Richard Nixon em 1968, que conquistaria a presidência meses depois.
«Os políticos que estão a gritar para baixo, para as ruas, fariam melhor em apoiar a ofensiva legislativa por justiça social e o fim da repressão policial. A legislação proposta pelo Congresso contra estrangulamentos deveria ser renomeada lei George Floyd. Além disso, deve haver leis escritas contra a invasão de casas de negros sem bater à porta», apelou o professor universitário. Referia-se, por exemplo, ao caso de Breonna Taylor, uma paramédica negra de Louisville, abatida pela polícia na sua própria casa, em março. Os agentes enganaram-se na morada e arrombaram a porta, com um mandato que lhes permitia não se anunciar. O namorado de Taylor, temendo que se tratasse de um assalto, disparou um único tiro – a polícia ripostou, atingindo a paramédica com oito tiros.

O luto, tristeza e fúria foi enorme na cidade. Não espanta que agora Louisville seja palco dos mais violentos protestos, com quatro agentes baleados, bem como a morte de David McAtee, o popular dono de uma churrascaria, que costumava até oferecer refeições gratuitas à polícia. Nem sequer fazia parte dos protestos, estava apenas com um grupo de amigos e familiares, à frente do seu restaurante. As autoridades dizem que McAtee terá disparado – mas, mais uma vez, à semelhança do sucedido com Taylor, os agentes não tinham a sua câmara corporal ligada.

‘Filhos e netos desses veteranos’
Muito ficou por conquistar em 1968. A segregação passou a ser formalmente proibida – mas quem olhe para a composição demográfica da maioria dos bairros norte-americanas pode perguntar-se se foi abolida na prática. A situação já vem de trás, do rescaldo da grande migração, quando seis milhões de negros partiram do sul para o norte, no início do século XX, para escapar à segregação. Foram recebidos com uma brutal descriminação, em termos de acesso à habitação, saúde ou ao mercado de trabalho. Aliás, é desse período que vêm as raízes da prática da gorjeta, tão típica nos Estados Unidos: dar uma gratificação aos empregados estava muito na moda entre as elites da Europa, mas tornou-se sistémico em restaurantes e estações de comboio norte-americanas, permitindo aos donos não pagar aos empregados negros, escravos libertados e seus filhos e netos, argumentam os historiadores.

Contudo esse não é o único artefacto desses tempos: mesmo no New Deal, talvez a mais estrutural legislação aprovada na história dos EUA, apresentada por Franklin D. Roosevelt, que virou o Partido Democrata de partido do Sul para para progressista, o racismo estava bem presente, defende Komozi Woodard. «Havia um fosso gritante entre o New Deal para a América Branca e o Raw [cru] Deal para a América Negra. A América Branca foi levantada pela lei dos direitos para os veteranos, os apoios à habitação e aos agricultores, Segurança Social, etc. Contudo, a América negra foi excluída dessa bonança do Governo», assegura. «Tragicamente, a revolução dos direitos civis fez muito pouco para eliminar a contradição básica entre as duas Américas», lamenta o historiador. «Foi por isso que o dr. King morreu quando liderava a Poor People’s Campaign».

Desde então, a descriminação racial ganhou novas formas, do encarceramento em massa de negros até à guetização dos subúrbios. Algo particularmente óbvio em Nova Iorque, onde vive Woodard. «A segregação negra nesses mapas é particular. Os afroamericanos vivem apenas nuns poucos bairros na vasta cidade de Nova Iorque. Ligado a isso, a taxa de desemprego de negros no Harlem manteve-se em níveis semelhantes à Grande Depressão até ao século XXI. E agora, com a pandemia, obviamente, até essa catástrofe piorou».

Com tantos jovens negros encarcerados, tantas queixas e vídeos de abusos policiais, poderá muito bem não ser a última vez que vemos protestos assim, que ecoam a raiva com a morte de Eric Garner, em 2014, ou pela absolvição dos polícias que espancaram Rodney King, em 1992. E décadas antes disso, já houvera a esquecida campanha Stop Killer Cops, nos anos 70. Talvez esse seja o legado mais direto recebido pelo Black Lives Matter, herdeiro do movimento dos direitos civis e do Black Power. «Em muitas famílias, são filhos e netos desses veteranos», garante Woodard. «E chegaram à maturidade nesta luta».