A América a preto e branco

A cor preta teve desde tempos muito recuados conotações malignas e diabólicas, que viajaram da Europa e criaram raízes no continente norte-americano. O derrubar desses preconceitos foi um processo que conheceu avanços e recuos, e que envolveu desde simples viagens de autocarro ao mais cobiçado prémio literário de todo o mundo.

A cor da pele tem alguma importância? A resposta, ainda que controversa, só pode ser sim. E a história dos Estados Unidos da América está aí para dar o seu testemunho.

Para o historiador Howard Zinn, autor da famosa A People’s History of the United States, em que deu voz aos anónimos e aos ignorados, a questão nem tem só que ver com o estigma da escravatura. «Por vezes é assinalado que, mesmo antes de 1600, quando o tráfico escravo mal tinha começado, antes de os Africanos ficarem marcados – literal e simbolicamente – por isso, a cor preta já era de mau gosto. Em Inglaterra, antes de 1600, de acordo com o Oxford English Dictionary, significava: ‘Profundamente manchado com sujidade; conspurcado, sujo, imundo. Possuindo intenções obscuras ou mortais, maligno; referente ou envolvendo a morte, mortal; funesto, desastroso, sinistro’».

Michel Pastoureau, que estudou as cores e o seu simbolismo, também fala dessas conotações negativas. E afirma que o preto é a cor do sabat e da caça às bruxas. «Nas atas dos processos, nos relatos pormenorizados de cerimónias satânicas, nos diferentes capítulos dos tratados de demonologia e dos manuais de exorcismo, a cor repete-se constantemente», descreve em Preto – História de uma cor. «Tomemos o exemplo do sabat, que parece obcecar toda a Europa nos anos de 1600. Tem lugar de noite, nas trevas, perto de ruínas ou em plena floresta, por vezes em lugares subterrâneos deveras sombrios. Os participantes vão de roupa preta, cobertos de fuligem (para irem ao sabat, há quem atravesse chaminés), roupa essa que despem para tomar parte na missa negra, nos banquetes, nos sacrifícios e nas orgias. O próprio Diabo aparece sob a forma de um grande animal preto, horrível e imundo, cornudo, peludo ou com garras».

O historiador das cores refere-se apenas à Europa – mas como poderiam os colonos americanos, descendentes dos protestantes (que foram ainda mais rigorosos mais do que os católicos nestas caças às bruxas) ficar indiferentes a estas crenças e superstições?

«Muitos provérbios, adágios e expressões datando desse período [Idade Moderna] convidam a desconfiar dos animais de pelagem ou plumagem preta. Dão testemunho de crenças e de comportamentos espalhados por toda a Europa moderna e mostram cabalmente como, para a maioria, a cor preta é então sentida como inquietante, negativa, maléfica», conclui Pastoureau.

O preconceito contra o negro vinha pois muito de trás, e foi transplantado do Velho Continente para a América, onde dificilmente podia ser apagado ou escondido. Muito depois do fim da escravatura (confirmado pela derrota do exército sulista na Guerra Civil em 1865), a cor da pele continuava a ser motivo de discriminação, conduzindo a injustiças gritantes.

«Quando as cidades se tornaram centros de movimento e de mobilidade», escreveu o grande historiador e professor Daniel J. Boorstin, «quando mesmo as fronteiras entre a cidade e o campo se tinham tornado incertas, o Negro encontrou-se excluído e confinado. Alguns chamaram a isto o Dilema Americano. Mas seria mais adequado chamar-lhe o Paradoxo Americano – uma contradição que era ao mesmo tempo inexplicável e indefensável», precisa.

«O Negro tinha sido empurrado para um canal tortuoso e segregado no seu caminho para a vida americana», continua Boorstin no terceiro volume do seu monumental Os Americanos – A Experiência Democrática. «A experiência urbana, que lhe tinha dado a oportunidade de ser ele mesmo, também o tinha separado dos outros americanos, tinha atiçado o seu ressentimento e cavado o seu sentimento de indelével identidade racial. Isto gerou inevitavelmente receios e hostilidades entre os seus congéneres americanos que não o conheciam mas não o queriam ter por vizinho. A tensão entre raças manifestou-se em linchamentos, na execução ilegal de indivíduos negros, e depois de cerca de 1890 foi exacerbada por conflitos de grupo». Em 1915 era fundado na Geórgia o infame segundo Ku Klux Klan, movimento supremacista branco que na década de 1920 teria cerca de quatro milhões de membros.

Nessa mesma década, a Norte, registava-se no estado de Nova Iorque o florescimento intelectual que ficou conhecido como o Renascimento do Harlem, liderado pelo filósofo (e primeiro professor afro-americano de Harvard) Alain Locke à cabeça.

Apesar das conquistas, até meados do século XX a segregação – que se traduzia em discriminações degradantes como casas de banho separadas ou lugares de autocarro reservados a brancos – foi uma realidade em certos estados. E não só a Sul. A escritora Toni Morrison recordava: «Em Washington havia uns grandes armazéns onde nós – raparigas de cor – podíamos ir à casa de banho. […] Não nos deixavam usar a casa de banho em mais nenhum sítio. E havia pequenas placas nos autocarros: ‘Só Brancos’. Roubei uma e mandei-a para a minha mãe”.
Uma imposição que Rosa Parks, em dezembro de 1955, decidiu ignorar. Foi multada em dez dólares mas a sua teimosia deu frutos. Ao fim de um ano de boicote e de luta, o Supremo deu razão aos negros, declarando inconstitucional a segregação racial no estado do Alabama. Isso permitiu a Martin Luther King Jr., perto das seis da manhã de 21 de dezembro de 1956, sentar-se num desses lugares da frente sem ser incomodado.
Já desde há muito, recorde-se, que os negros vinham assumindo, por exemplo, lugares políticos, carreira em que Frederyck Douglass (1818-1895), notável abolicionista e membro do Partido Republicano, fora pioneiro. Mas as conquistas faziam-se de avanços e recuos. Quando na década de 60 Bob Dylan cantava «How many roads must a man walk down before you call him a man?», muitos negros identificavam-se com essas palavras.

Ainda assim, aos poucos, não era apenas como músicos, atores ou estrelas do desporto que os afrodescendentes tinham a via aberta para carreiras de grande sucesso. Em 1967 Thurgood Marshal tornou-se o primeiro negro juiz do Supremo Tribunal. Nas universidades, nas empresas, nos grandes escritórios de advogados, os negros assumiram posições de relevo.

Este processo de afirmação passou também pela cultura. Se a influência dos espirituais negros, do jazz e do blues eram impossíveis de ignorar, também nas letras emergiram figuras como James Baldwin e Toni Morrison. No ano da morte de Baldwin, 1987, Morrison publicava Beloved, a história chocante de uma mulher escrava que consegue escapar ao cativeiro e, na iminência de ser apanhada, mata o filho bebé para que ele não sofra os horrores da escravatura. O enredo inspirava-se em factos reais, relatados num artigo encontrado por Morrison num jornal de 1856.

Em 1993 a autora venceu o Nobel da literatura – um grande passo para uma mulher negra, e um passo ainda maior contra o preconceito.