As memórias que assombram Trump

Desde acusações de que pediu à China para interferir nas eleições, até alegações de que maltratou o pai, dois livros dão gás aos escândalos em redor de Trump.

Alguns esqueletos no armário de Donald Trump ficaram à vista de todos com dois recentes livros de memórias. O primeiro é assinado por John Bolton, em tempos um dos conselheiros mais próximos do Presidente norte-americano; o segundo foi escrito pela própria sobrinha de Trump, Mary – ambos estão na mira dos advogados de Trump. Por um lado, Bolton mostra uma Casa Branca caótica, incompetente e fácil de manipular, disposta a moldar as suas políticas com o propósito exclusivo de reeleger Presidente. Por outro, Mary, formada em psicologia, descreve a sua família como um “pesadelo de traumas, relações destrutivas e uma trágica combinação de negligência e abuso”, segundo a editora Simon & Schuster, que também publicou o livro de Bolton.

Talvez a mais grave acusação no livro The Room Where It Happened: A White House Memoir, de Bolton, seja a de que o Presidente norte-americano pediu diretamente ajuda ao Presidente chinês, Xi Jinping, para ser reeleito. Os dois chefes de Estado sempre tiveram uma relação paradoxal: em certos momentos, Trump teceu rasgados elogios ao líder chinês, vistos como admiração pelo autoritarismo do regime; noutros, a Administração norte-americana encetou uma longa e amarga guerra comercial contra a China, com consequências para a economia global.

Alegadamente, durante uma cimeira do G20, no Japão, em junho de 2019, onde se debateu uma solução para a guerra comercial, Jinping ter-se-á queixado dos seus críticos nos EUA. “Trump imediatamente assumiu que Xi se referia aos democratas. Trump disse de forma aprovadora que havia uma grande hostilidade entre democratas”, escreveu Bolton, num excerto do seu livro, a que o Washington Post teve acesso. “Então ele, espantosamente, virou a conversa para as eleições presidenciais norte-americanas, aludindo à capacidade económica da China para afetar as campanhas em curso, pedindo a Xi que garantisse que ele ganhava”.

Afinal qual o poder concreto que a China tinha sobre o eleitorado naquele momento? Na sua conversa com o Presidente chinês, Trump “enfatizou a importância dos agricultores, e de um aumento da compra de soja e trigo pelos chineses, no resultado eleitoral”, escreveu Bolton.

De facto, Trump estava “a sentir pressão política para conseguir um acordo, particularmente no Midwest”, onde ficam alguns estados indecisos, essenciais nas eleições, explicou na altura Michael Moore, professor de relações internacionais na Universidade George Washington, à NBC. Tenha o pedido acontecido ou não, o Presidente norte-americano saiu da cimeira com a promessa de que a China compraria uma “quantidade tremenda de alimentos” aos EUA, enquanto os mercados financeiros respiravam de alívio.

 

Vendas As acusações são muito semelhantes ao sucedido entre Trump e o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, no ano passado. Algo que levou à abertura de um processo de destituição de Trump, por ter pressionado Zelensky a investigar o seu principal rival, Joe Biden.

Curiosamente, Bolton não quis discutir o assunto a fundo na altura. O ex-conselheiro de Segurança Nacional, demitido uns meses antes, foi acusado de não querer revelar os seus segredos para impulsionar as vendas do seu livro de memórias, que já estava a escrever.

Entretanto, o livro de Bolton recebeu péssimas recensões, sendo qualificado como “inchado de auto-engrandecimento” ou “excessivamente entediante e ligeiramente louco”, pelo New York Times. Já o Washington Post notava a sua “completa falta de autocrítica”. O que não impediu o livro de chegar a número 1 da Amazon, ainda antes de ser lançado. O processo movido pelo Presidente, que tentou impedir a publicação, por conter material confidencial, terá ajudado – como diz o ditado, o fruto proibido é o mais apetecido. 

 

Traumas Na frente doméstica, Trump enfrenta Too Much and Never Enough: How My Family Created the World’s Most Dangerous Man. O livro, escrito pela sua sobrinha, só será lançado a 28 de julho, nas vésperas da convenção nacional republicana, e certamente não será agradável para o Presidente, que já planeia processar Mary. Afinal, procura descrever como “padrões familiares criaram o homem danificado que ocupa o Escritório Oval, incluindo a estranha e danosa relação entre Fred Trump e os seus dois filhos mais velhos, Fred Jr. e Donald”.

O mau sangue entre Mary, filha de Fred Jr., e Donald é antigo. Ela nunca perdoou o que via como os maus tratos cometidos pelo tio contra Fred Jr, que sofria de alcoolismo e morreu de ataque cardíaco, aos 42 anos. Tudo escalou nos anos 2000, na disputa pela herança de Fred: como retaliação, o futuro Presidente cortou os fundos médicos para o sobrinho de Mary, um bebé com paralisia cerebral.

“Estava zangado porque eles processaram-me”, justificou o Presidente ao jornal norte-americano – entretanto, Mary tinha sido forçada a assinar um contrato de sigilo quanto ao assunto. Ainda assim, segundo o Daily Beast, o livro deverá incluir outras pérolas. Como a descrição de Trump a gozar com o pai, quando este começou a sofrer de Alzheimer, ou a revelação de que Mary deu dicas ao New York Times para uma investigação que verificou que Trump escondeu centenas de milhões de dólares do fisco.