“Se algum dos meus colegas americanos defendesse o que eu defendi teria sido banido”

O historiador da escravatura João Pedro Marques acredita que há censura nas universidades e diz que a versão oficial da História ali ensinada culpabiliza os ocidentais. Sobre as estátuas que têm sido vandalizadas ou retiradas não tem dúvidas: ‘As estátuas devem ficar’. Mesmo as de figuras controversas.

Antigo professor do ensino secundário, é doutorado em História e tem-se dedicado a estudar a fundo a história da escravatura e da sua abolição. Aquilo que tem descoberto leva-o a pôr em causa certas ideias feitas e mitos que persistem sobre o papel de Portugal nesta prática infame.

João Pedro Marques começou a interessar-se pelo assunto na década de 1980, quando entrou para o Instituto de Investigação Científica Tropical e lhe foi pedido para escolher um tema de estudo relacionado com as antigas colónias portuguesas. «Fiquei surpreendido com o desenvolvimento dos estudos sobre a escravatura nos Estados Unidos e a quase total ignorância que havia aqui em Portugal. Comecei a ver que tínhamos uma série de ideias erradas acerca disso», recorda. Mais de trinta anos depois, continua envolvido no debate intenso sobre estas questões, nomeadamente através de artigos que publica na imprensa, onde denuncia «simplificações e omissões». Combates pela Verdade – Portugal e os Escravos (ed. Guerra &_Paz) reúne algumas dezenas de textos que dedicou a este tema em jornais como o Diário de Notícias, o Público e o Observador.

Há mais ou menos uma semana, a cadeia americana HBO retirou do catálogo de um dos seus canais o filme E Tudo o Vento Levou, julgo que por reproduzir estereótipos racistas. Esta decisão, no seu entender, faz sentido?

Não faz nenhum sentido. Atitudes deste género significam pura e simplesmente o fim da História. Se ‘corrigirmos’ tudo à luz dos nossos conceitos atuais acabamos com a diversidade. Aquele filme tenta mostrar a sociedade na Virgínia durante a Guerra Civil e é também a representação que na década de 40 se tinha sobre aquele assunto. Isso tem de ser mostrado assim para que nós percebamos como as pessoas viam as coisas. Eu olho com grande apreensão, e com grande irritação, esse movimento politicamente correto de correção das obras de arte e da literatura que quer, por exemplo, suprimir a linguagem racista de certas passagens do Huckleberry Finn, do Mark Twain. O texto é sobre uma sociedade racista. As pessoas numa sociedade racista falavam com estereótipos racistas. Corrigir isto é uma aberração.

É como se estivéssemos a reatualizar a História à luz dos pontos de vista do presente?

Exato. No fundo é o 1984, do George Orwell. A tarefa do herói da história era reescrever as notícias do passado para as adaptar ao presente. Isto é uma coisa alucinante, perigosíssima para a saúde mental das sociedades.

Presumo que a escolha do título do seu livro não tenha sido inocente. Chamou-lhe Combates pela Verdade porque sente que há muitas mentiras, muitos mitos a circular sobre a escravatura?

Sim. Mas mais do que mentiras há grandes simplificações. E grandes omissões. Chamei-lhe ‘combates’ porque no fundo reproduz o debate que, no momento em que o livro foi feito, durava há três anos. E no qual me fui confrontando com vários opositores. Uma coisa interessante é que esses opositores tentam transmitir para a opinião pública uma vulgata. Essa vulgata é a seguinte: Portugal foi o criador do tráfico de escravos e da escravatura, em termos gerais. Omite-se logo aqui a escravatura que pré-existia aos Descobrimentos portugueses, omite-se a escravatura que foi desenvolvida pelos países muçulmanos a partir do século VII-VIII, que teve uma dimensão imensa e que já tinha exportado de África milhões de pessoas.

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