Começou o referendo para eternizar Putin no poder

Os russos vão às urnas, entre o medo da covid-19 e apelos ao boicote, num ato eleitoral considerado muito pouco transparente. 

Os russos começaram esta quinta-feira a ir às urnas, num referendo a reformas constitucionais, vistas como maneira de eternizar a presidência de Vladimir Putin. Devido à pandemia e ao risco da sobrelotação de locais de voto, estes abriram mais cedo e vão funcionar até à data original do referendo, 1 de julho. No terceiro país com mais casos registados de coronavírus, o Governo está desesperado por uma elevada taxa de participação, como demonstração de força, e já há acusações de falta de transparência. Tudo parece incerto, menos o resultado das eleições em si: seria uma enorme surpresa se o popular Putin, um antigo agente do KGB, conhecido pelo estilo de homem forte, não saísse vitorioso.

Importa perguntarmo-nos no que é que os cerca de 110 milhões de eleitores russos, do enclave de Kalinegrado, no Báltico, até ao Kamtchatka, nas margens do Pacífico, estão a votar. Sem dúvida, o ponto mais badalado das reformas constitucionais têm a ver com a diminuição de limitação de mandatos, permitindo a Putin, hoje com 67 anos, potencialmente, governar até 2036, quando tiver 83 anos.

“Se isto não acontecer, dentro de cerca de dois anos – e sei isto pela minha experiência pessoal – o ritmo normal de trabalho de muitas partes do Governo vai ser substituído pela procura de potenciais sucessores”, explicou o Presidente russo, em declarações à agência estatal Interfax. “Nós devemos estar a trabalhar, não à procura de sucessores”.

De facto, poderia ser uma busca complicada para Putin, após a demissão do seu aparente sucessor, o primeiro-ministro Dimitri Medvedev: era visto como fantoche do Presidente, mas acabou por ficar com as culpas da brutal crise económica que assolou a Rússia, ainda antes da pandemia. Já o atual primeiro-ministro, Mikhail Mishustin, que até ser nomeado era um burocrata pouco conhecido, tem-se conseguido manter fora da ribalta. 

 

Controlo, conservadorismo e religião No entanto, as reformas constitucionais propostas envolvem outras questões além da sucessão. Como alterações quanto às competências do Parlamento, a Duma, em que quase dois terços está sobre controlo do Rússia Unida, de Putin: os deputados passam a poder nomear ministros ou afastar juízes considerado “desonrosos”, pondo em causa a já frágil separação de poderes na Rússia.

Além disso, estas emendas à constituição confirmariam a orientação religiosa e conservadora que tem ganho o Estado russo, sobre a alçada de Putin, nos últimos vinte anos. O novo documento menciona a “fé em Deus” como alicerce da Rússia, algo visto como um piscar de olho à Igreja Ortodoxa, cada vez mais influente, num país com grandes comunidades islâmicas ou budistas, que há muito se queixam de descriminação.

Também será alterada a definição de casamento, passando a ser explicitamente descrito como exclusivamente entre um homem e uma mulher. Não que houvesse grande hipótese do atual Governo russo, que chegou a proibir a “propaganda gay”, legalizasse o casamento de pessoas do mesmo sexo.

Para rematar, foram feitas promessas de apoios económicos aos cidadãos russos. Por exemplo, os “apoios à maternidade” estão ligados ao resultado do referendo, lembrou o jornal estatal Rossiyskaya Gazeta, salientando que o Governo tinha como prioridade uma educação “patriótica” para as crianças. 

 

Falta de transparência? Não é fácil votar no meio de uma pandemia, muito menos em cidades como Moscovo e Nijni Novgorod, que sofreram os piores surtos de covid-19 na Rússia – só esta quinta-feira foram registados 885 casos na capital, segundo a agência TASS. Como tal, os cerca de 1,2 milhões de habitantes destas regiões foram autorizados a votar online – havendo sérios receios de que isso facilite fraude eleitoral.

Esse não é o único problema: É que a preocupação do Presidente russo não é uma possível derrota, é a abstenção. “Nunca tivemos tantas queixas de pessoas a dizerem-nos que estão a ser pressionadas a votar”, assegurou Grigory Melkonyants, dirigente da Golos, uma ONG russa que tenta monitorizar as eleições.

No que toca a este referendo, Melkonyants qualificou-o como o “mais manipulado” e “menos transparente” processo eleitoral das últimas décadas, em declarações ao Moscow Times. O jornal russo verificou inúmeros casos de entidades patronais a obrigarem os seus empregados a registarem-se para votar, de bibliotecários em São Petersburgo, no oeste, até a médicos em Arkhangelsk, no norte, e Vladivostok, no longínquo este.

Isto apesar dos apelos ao boicote do referendo, feito por líderes da oposição russa, como Alexei Navalny. “Votar nestas emendas é ilegal, inútil e perigoso para a vossa saúde”, declarou o opositor, que há muito se queixa de perseguição política. “Vocês podem boicotá-las. Seria a coisa certa e honesta a fazer”.