Lisboa faz marcha atrás no desconfinamento para travar o vírus mas as campainhas soaram nas últimas semanas noutros pontos do país, com o aumento de surtos e alguns casos importados da grande Lisboa. O Governo decidiu esta semana apertar as regras na Área Metropolitana de Lisboa, e em particular nas 19 freguesias com mais casos ativos. Segundo o SOL apurou, o concelho de Sintra, que de resto registou o maior número de novos casos desde o início do desconfinamento, é o que tem neste momento mais casos ativos, mas o dever de recolhimento domiciliário regressa não só nas seis freguesias urbanas de Sintra, de Queluz-Belas a Rio de Mouro, mas também na totalidade dos concelhos de Odivelas e Amadora, nas freguesias de Sacavém e Camarate, em Loures, e na freguesia de Santa Clara, na capital.
A partir de quarta-feira, o país passa a ter três velocidades e multas até 500 euros para quem passar os vermelhos impostos pelo Executivo. O estado de calamidade mantém-se nas 19 freguesias mais sensíveis, a Área Metropolitana de Lisboa passa ao nível de contingência e o resto do país passa ao estado de alerta, que o primeiro-ministro anunciou que vai manter-se até ao final da pandemia, e que ninguém sabe apontar quando chegará. Para já, as novas medidas, que incluem proibição de consumo de álcool na via pública em todo o país para evitar botellóns, e lojas e cafés/esplanadas fechados na grande Lisboa a partir das 20h, vão manter-se nos próximos 15 dias.
Segunda onda? Não se sabe
Depois de, na reunião técnica desta semana, no Infarmed ter sido admitida a hipótese de se estar a viver uma segunda onda em Lisboa, ideia transmitida à saída pelos partidos, que de resto, a par do Presidente da República, se pronunciam sempre no final do encontro que reúne altas figuras do Estado e representantes setoriais e decorre à porta fechada, a teoria foi entretanto clarificada pelos investigadores do Instituto Ricardo Jorge, que explicaram à Lusa que «a tendência e a magnitude dos valores da curva epidémica não nos permitem excluir — ou concluir inequivocamente – estar perante uma segunda fase de crescimento». Não havendo certezas, a ideia não é consensual entre os investigadores e Miguel Carmo Gomes, que se mostrou mais preocupado com eventos de super-disseminação como o aconteceu na festa de Odiáxere, assumiu publicamente discordar, apontando mais para uma maré mais cheia numa primeira onda que não foi igual em todo o país. Pode também pensar-se na metáfora do vírus como um incêndio, de um reacendimento que não foi atacado no início. Certo é que a tendência de crescimento mais acelerado de casos em Lisboa que se registou em maio abrandou nas últimas semanas e que os rastreios feitos no final daquele mês, quando se detetaram surtos na construção civil e trabalhadores temporários, não explicam tudo. Se na reunião desta semana uma das conclusões apresentadas ao Governo foi a de que os testes feitos na região não justificam o aumento de casos detetados, os dados que foram apresentados publicamente ao longo das últimas semanas já permitiam essa conclusão. A 4 de junho, o primeiro-ministro afirmou numa entrevista à TVI que tinham sido feitos 17 mil testes no âmbito dos rastreios, que tinham detetado 4% de casos positivos, mas nos dias seguintes a ministra da Saúde viria a indicar que foram colhidas 14 mil colheitas. A 16 de junho, concluía-se que tinha havido 731 resultados positivos e só naquela altura estavam incluídos nos boletins 93% destes testes. Desde o início do desconfinamento, a 4 de maio, a região de Lisboa e Vale do Tejo detetou 11 900 novos casos de covid-19, um crescimento que desde o final de abril sobressaía em relação às restantes regiões do país, chegando a ter crescimentos percentuais diários de 4%. Nas últimas semanas o crescimento abrandou para um aumento na casa de 1% ao dia.
RT é menor em Lisboa, mas aumentou no resto do país
O Governo anunciou o reforço das equipas de saúde pública e tem aumentado o número de contactos de doentes em vigilância, que esta semana voltaram a atingir um novo recorde, mas ontem a ministra da Saúde disse que continua a haver dificuldade em quebrar cadeias de transmissão. Ainda assim, o Governo e o Presidente da República refutaram a ideia de uma situação descontrolada, para a qual têm alertado alguns médicos. Ao i, o diretor do serviço de infecciologia do Curry Cabral, Fernando Maltez, indicou que no seu serviço pelo menos 50% dos doentes não têm indicação epidemiológica conhecida, portanto não se sabe onde contraíram a infeção, alertando por isso para o risco muito elevado de contágio que se vive neste momento na grande Lisboa. «As pessoas têm de ficar conscientes de que a situação não está resolvida e pode piorar», pediu Fernando Maltez.
Nas últimas semanas, o Instituto Ricardo Jorge passou a publicar relatórios com a evolução do índice de contágio do país, uma análise que até aqui só era apresentada ao Governo. No relatório mais recente, disponibilizado ontem, o cálculo do R(t) – o indicador que calcula a média de novos casos a partir de cada infetado e dá uma indicação da velocidade da propagação da doença – mantém o que já vinha acontecendo desde a semana passada: a epidemia parece estar com alguma desaceleração em Lisboa, mas aumentou no resto do país, onde novos surtos fizeram aumentar o contágio. O RT é agora 1,11 na região Norte, 1,2 na região Centro, 1,03 na região LVT, 1,29 na região do Alentejo e 1,2 na região do Algarve. Os mesmos relatórios do INSA dão uma perspetiva sobre as últimas semanas e mostram que a transmissão em Lisboa e Vale do Tejo começou a aumentar a meados de abril, sendo que a partir do dia 29 o RT em Lisboa manteve-se sempre acima de 1 até dia 6 de junho, tendo chegado a ser de 1,14.
Combate à pandemia é trabalho de paciência
Lisboa continua a concentrar a maioria dos novos casos e na última semana, de sexta passada a ontem, o número foi sensivelmente idêntico ao da semana anterior (1851/1848), sendo que só os próximos dias permitirão perceber a tendência. No Norte houve 205 casos, menos do que na semana anterior, mas acima do que aconteceu em maio. No Alentejo verificou-se o maior aumento: 145 novos casos reportados nos últimos sete dias contra 27 na semana anterior, a maioria ligados ao surto em Reguengos de Monsaraz. As estimativas do INSA de casos que ainda não foram detetados ou reportados sugerem que o patamar de novos casos deverá manter-se ou aumentar ligeiramente nos próximos dias, mas com o contributo não só de Lisboa mas das restantes regiões.
Se os alarmes soaram a Sul com o surto em Lagos, mais de 100 casos ligados a uma festa num sábado à noite, ou com novos surtos em lares e hospitais, há outros indicadores de que o padrão de acalmia no resto do país já não é igual ao que se viveu em maio. E com as férias, deslocações e entrada de turistas, o SOL sabe que tem aumentado a apreensão nos hospitais e autoridades de saúde, ainda que a pressão hospitalar seja inferior à que viveu em abril, à exceção dos hospitais da grande Lisboa. Ovar, que durante dois meses foi alvo de uma cerca sanitária, registou nos últimos quatro dias 10 novos casos, quando em todo o mês de maio tinham sido diagnosticados 24. Ao SOL, o presidente da Câmara, Salvador Malheiro, explicou que o aparecimento de novos casos, depois de vários dias com zero infeções no início do mês, fez soar os alarmes e levou a reforçar os rastreios para quebrar de imediato cadeias de transmissão. São situações variadas, que incluem dois casos importados de Lisboa, no âmbito de deslocações em trabalho. O SOL sabe que também nos hospitais do Norte têm sido agora detetados alguns casos ligados a Lisboa, como quando no início da epidemia a deslocação foi de Norte para Sul, mas também ao estrangeiro. Ao mesmo tempo, no Norte continua a existir transmissão comunitária, continuando assim a ser detetados casos de pessoas que contraem a infeção sem saber que estiveram com alguém infetado. O SOL sabe que esta semana foram diagnosticados dois casos no Hospital de São João em que não havia à partida link epidemiológico, isto além de um caso ligado a Lisboa e outro a Inglaterra. O SOL tentou também perceber junto do Ministério da Saúde se existe uma perceção de quantos casos ligados a Lisboa foram detetados nas últimas semanas, mas não teve resposta. Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, admitiu ao SOL que o aumento de casos noutros pontos do país poderá estar ligado às deslocações na semana dos feriados. Se na intervenção no final do Conselho de Ministros desta semana o primeiro-ministro salientou que os indicadores nacionais se mantêm estáveis, lembrando que era sabido que o risco aumentaria com o desconfinamento e considerando que a situação está controlada e dentro do expectável, Ricardo Mexia salienta que o aumento pode ser lento, mas o patamar de novos casos é elevado, daí o maior risco, considerando insuficiente o reforço feito até ao momento nas equipas de saúde pública.
Esta sexta-feira, a ministra da Saúde sublinhou que, apesar dos casos nas outras regiões, Lisboa se mantém o principal foco. E recordou a ideia reforçada também na última semana pelo primeiro-ministro: «A covid-19 só desaparecerá das nossas vidas quando surgir uma vacina ou tratamento eficaz, logo o facto de Portugal ter tido uma situação epidemiológica melhor, mais favorável, menos dura do que outros países e de, agora, enfrentar números consistentes em algumas freguesias é um motivo para reforçar o nosso esforço articulado ao nível da saúde pública, solidariedade social, emprego, economia, habitação, transportes e trabalho com autarquias e sociedade civil», disse Marta Temido, sublinhando que o combate à pandemia será um trabalho de paciência.
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