Biblioteca Pessoal. Cézanne e o pincel bêbedo

A quantidade de livros sobre Cézanne e a sua obra não tem fim. O mais cotado entre os especialistas é talvez o que lhe dedicou o historiador da arte britânico Roger Fry, Cézanne: A Study of his Development, em 1927. 

Há duas coisas que a maioria das pessoas tem muita dificuldade em deitar fora: comida e livros. Quase todos nós temos em casa livros que não nos merecem especial consideração, uma espécie de ‘patinhos feios’. Ainda assim, vamo-los conservamos na estante com um sentimento de condescendência.

É o caso de um pequeno volume cartonado sobre o pintor francês Paul Cézanne que adquiri há uns anos, de um autor checo, e que ostenta na capa uma reprodução não especialmente nítida de uma pintura não especialmente bonita.
A quantidade de livros sobre Cézanne e a sua obra não tem fim. O mais cotado entre os especialistas é talvez o que lhe dedicou o historiador da arte britânico Roger Fry, Cézanne: A Study of his Development, em 1927. Depois há a biografia – cheia de episódios picarescos, mas talvez não muito fidedigna – escrita pelo marchand Ambroise Vollard e o excelente livro de memórias O que Ele me Disse, de Joachim Gasquet. Mais recentemente, foi publicada a respeitável biografia de Alex Danchev.

Neste ranking, o despretensioso volume que referi no início, da autoria do historiador da arte checo Miroslav Mícko e datado de 1975, ocupará uma posição muito modesta: não é o mais inovador, nem o mais profundo, nem o mais atualizado. Ainda assim, ao abri-lo um destes dias, as reservas iniciais deram lugar a uma agradável surpresa.
Como sucedeu com tantos artistas verdadeiramente originais, Cézanne foi inicialmente depreciado e ridicularizado. As críticas às pinturas que exibiu na primeira exposição dos impressionistas – que curiosamente teve lugar no ateliê do fotógrafo Nadar, em 1874 – foram especialmente violentas. Chegaram a compará-lo a «um louco atingido de delirium tremens [os tremores provocados pela abstinência no alcoólico em último grau] quando pinta». Algumas décadas antes, tinham dito algo parecido acerca de Delacroix: que pintava com um pincel bêbedo.

Por estas e por outras, não admira que Cézanne se tenha tornado cada vez mais fechado, mais carrancudo, mais avesso ao contacto social. Outro episódio contribuiu, e muito, para esse afastamento: a publicação do livro de Émile Zola L’Oeuvre (A Obra), em 1886. Trata-se da história de um pintor falhado, um «génio incompleto» que, incapaz de concretizar as suas grandes ambições, acaba por suicidar-se.

Cézanne e Zola eram amigos de infância. Na juventude, davam grandes passeios pelos campos em redor de Aix-en-Provence e mergulhavam juntos no rio Arc. Mais tarde, fora Zola a convencer o amigo a investir na sua paixão pela pintura e a instalar-se em Paris, onde teria mais condições para desenvolver o seu talento. Vendo-se implacavelmente retratado na personagem do livro, Cézanne cortou relações com o escritor.

Embora não seja certamente um estudo muito inovador ou exaustivo, o livro de Miroslav Mícko oferece uma excelente síntese sobre a vida e obra do pintor francês, com um texto límpido e informação consistente. O filósofo norte-americano do século XIX Ralph Waldo Emerson dizia: «Todo o homem que eu encontro é superior a mim em alguma coisa, e nisso posso aprender com ele». Poderíamos aplicar esta máxima – que é também uma lição de humildade – aos livros. Todos eles têm alguma coisa a ensinar-nos… desde que estejamos dispostos a aprender.