Ar fresco

O Frente-a-Frente com João Soares e Poiares Maduro, conduzido por Rodrigues dos Santos, foi novidade. E o livro de JAS sobre Salazar era a obra que faltava sobre o homem e o regime.

Uma novidade…

No modelo esquizofrénico de partilha partidária que a generalidade dos canais de televisão adotam nos debates, enchendo os ecrãs sempre do ‘mesmo’, o Frente-a-Frente com João Soares e Poiares Maduro, conduzido por José Rodrigues dos Santos, foi novidade. Políticos mas homens livres – tal como o jornalista, que paga por isso mas não lhe custa.

Um programa sem o debitar das encomendas do costume.

Não subscrevo o que João Soares disse no que respeita à condução da resposta à epidemia. Andámos sempre atrás dela. Uma DGS que, se não for incompetente, nem digo o que será.

Mas concordo quanto a Mário Centeno, ou melhor: Portugal, que definha pela falta do mérito como critério nas escolhas, não pode prescindir da exceção de ter o homem certo no lugar certo. Como Centeno será. Embora os princípios enunciados por Poiares Maduro sejam justos. Mas como acontece sempre entre nós, se não fosse Centeno arranjar-se-ia sempre maneira de iludir esses princípios e colocar no lugar quem não o servisse.

Tal como na emissão anterior, João Soares levou novidade e frescura, cultura, talvez a ‘esperança da cultura’: uma metáfora de Vergílio Ferreira, muito bela e inspiradora como todas as grandes metáforas. A remeter para a de Pessoa, ‘D. Dinis, plantador de naus’. Naus de que hoje nos querem impor a queima, com a reescrita da História e o autorracismo a que se submete quem o devia enfrentar.

 Comoveu-me a evocação de Olof Palme, que trouxe a de Mário Soares, a falta que a liberdade e a presença dele (me) faz.

 Depois foi o fecho perfeito com Obama, lembrado tão oportunamente por Poiares Maduro. Um tempo em que os Estados Unidos tinham um Presidente que não dividia o seu país e não ameaçava assim o mundo.

 Finalmente, na televisão, um diálogo – triálogo’ – letrado e urbano. Sem a mediocridade do costume, iletrada e politiqueira, que desencoraja a inteligência, seca a democracia, produz um país idiota.

 E outra, noutras artes…

A ansiedade deu-me uma trégua para agarrar no livro de José António Saraiva. Muito mais do que o título indica, é a obra que faltava sobre o homem e o regime. Um livro que se lê sem o largarmos, se percebe e convence. Diz tudo sobre o tema, dá pistas sobre nós e para quem quiser discorrer sobre o que hoje nos ameaça. Escrito no estilo quase geométrico de um autor que teve o tempo de vida, o treino, a formação, o convívio e o temperamento certos para investigar a matéria e realizar a obra. Um exercício de objetividade e observação arguta que me apetece dizer quase genética, livre de ideologia, só comprometido com a procura da verdade. Uma novidade na arte, portanto.

 Para se perceber a perversidade, imediata ou a termo, das ditaduras, de todos os ditadores, dos métodos mais ou menos malignos ou discretos de todos eles, não é preciso inventar um Salazar a ‘preto e branco’. Como Salazar não era.