Um Rio de enganos…

Ao abdicar de ser oposição, Rio usa o palco para simular o papel de alternativa à ‘geringonça’, enquanto auxilia António Costa a ‘navegar em sossego’.

O debate quinzenal no parlamento permitia, com maior ou menor despique entre as bancadas, o diagnóstico regular da situação no país e promovia o escrutínio do governo pelas oposições. Esse debate, salutar em democracia, vai ficar circunscrito, graças a uma ideia peregrina de Rui Rio, empenhado, estranhamente, em ajudar o PS e António Costa a perpetuarem-se no poder sem terem grandes incómodos.

Mesmo o PCP, honrando, aliás, o seu fraco ‘apetite’ parlamentar, apressou-se a declarar, através do deputado António Filipe, que «não tem uma posição fechada sobre essa matéria».

Estão criadas, portanto, as condições para o regimento da Assembleia da República ser alterado, dispensando o Governo de prestar contas com a periodicidade em vigor desde 2007. Era impensável melhor ‘prenda’ de um adversário político…

Imagine-se, por momentos, como teria reagido o PS se esta proposta do PSD surgisse durante o governo de Passos Coelho, poupando-o ao confronto parlamentar. Cairia, decerto, ‘o Carmo e a Trindade’… Mudam-se os tempos, mudam-se os líderes, mudam-se as vontades.

Reconheça-se, contudo, a coerência do gesto de Rui Rio que, desde que foi eleito líder dos social-democratas, se tem revelado, afincadamente, uma ótima ‘muleta’ do Governo socialista.

Para se justificar, Rio reforçou mais ainda a bizarria, alegando que «o primeiro-ministro não pode passar a vida em debates quinzenais. Tem é de trabalhar». Lapidar.

Poderia tê-lo criticado, por exemplo, pelo tempo desbaratado nas inúmeras entrevistas em que se tem repetido, por entre cumplicidades televisivas, ou pela presença assídua em programas de fait divers, convidado de humoristas ou de entertainers rendidos ao poder.

Mas não. O que inquieta Rio é mesmo o facto de o primeiro-ministro dar-se à maçada de comparecer duas vezes por mês no Parlamento – como se isso não fosse trabalho inerente à função – e sujeitar-se à «gritaria» (sic) dos deputados, conforme explicou ao Expresso.

Se algum dia Rui Rio chegasse a primeiro-ministro – hipótese tão remota como inverosímil –, ficaria já a conhecer-se o perfil da sua ‘dieta’ parlamentar.

Para sermos justos, não é nada que admire, porquanto, depois de eleito líder do PSD, correu a S. Bento, para se avistar com Costa e celebrar uns acordos improvisados ‘em cima do joelho’ – com as câmaras de TV a reboque –, sem sequer se ter reunido antes com a bancada parlamentar social-democrata, por acaso a principal à época.

Refugiado a Norte, tão ausente nos incêndios de Pedrógão como em relação a Tancos ou às contradições na narrativa sobre a pandemia, Rio não ‘mexe um dedo’ que possa causar o menor engulho ao Governo.

Ao abdicar de ser oposição, Rio usa o palco para simular o papel de alternativa à ‘geringonça’, enquanto auxilia António Costa a ‘navegar em sossego’ – seja para reinserir a TAP falida no setor público, após a desastrosa ‘reversão’ em 2017 (criticada, inclusive, pelo Tribunal de Contas); seja para nacionalizar a Efacec, preenchendo o vazio de Isabel dos Santos, ‘caída em desgraça’; seja, ainda, para viabilizar, à socapa, a regionalização ou para ‘domesticar’ a Justiça.

Costa prossegue, metodicamente, a sua cartilha, dispondo as pedras a seu bel-prazer no aparelho de Estado. Em contrapartida, Rio imita o ‘sacristão’ que ajeita o livro que o ‘padre’ vai ler na missa…

Nesta moldura informal de um novo Bloco Central, couberam já, além do Orçamento Suplementar, a ida de Mário Centeno para o Banco de Portugal, e, até, o mais recente apoio à indigitação de Francisco Assis para presidir ao CES – onde Correia de Campos não conseguiu ser reeleito.

Ao desistir de liderar a oposição, invocando o «interesse nacional», Rio está a contribuir para a crescente irrelevância do PSD, cada vez mais perto de ser um partido regional. Pior, no entanto, é deixar o país sem escolha.

A oposição eclipsou-se, primeiro com a ‘geringonça’ que neutralizou, à esquerda, o PCP e o Bloco; depois, à direita, Rio optou por ‘anestesiar’ o partido, ‘encolhendo-o’ à medida dos seus desígnios.

Infelizmente, para o PSD e para o regime, Rio ‘esgotou-se’ politicamente à frente do município do Porto, e Marcelo Rebelo de Sousa quer ser reeleito para Belém, com uma votação histórica e sem chatices.

Com muitos media em aflições devido à sua debilidade estrutural, lesiva da independência, o jornalismo tornou-se obediente e sem ‘músculo’ para denunciar as tropelias e o crescendo de despudor do poder instalado.

Quando uma jovem socióloga, ministra de Estado por ‘herança de família’, anuncia, tranquilamente, o ‘policiamento’ da internet, a pretexto do ‘discurso do ódio’, para «monitorizar» queixas, identificar autores e «perceber» a forma de propagação, há uma nova censura na forja, enquanto Rio e Marcelo fingem que ‘no pasa nada’…