“Houve uma altura que quase matava uma vaca por semana para a levar em bifes para a prisão”

Vasco Gallego tornou-se conhecido de artistas, políticos, empresários e demais figuras da sociedade portuguesa quando abriu o XL, um restaurante nas traseiras da Assembleia da República. Durante dois anos, como gosta de dizer, foi o empresário que mais champanhe vendeu em Portugal. Nesta história de vida não faltam personagens como Amália, Mariza, António Gueterres, Bocelli,…

“Houve uma altura que quase matava uma vaca por semana para a levar em bifes para a prisão”

Desde que deixou a gestão do XL para o filho mais velho refugiou-se no Vale do Gaio, no Alentejo, onde vive num anexo do seu hotel, sem vista para a magnífica paisagem da barragem. Dali só sai às quintas-feiras para ir a Lisboa comprar o que não não há no Alentejo. E é no seu hotel com uma vista deslumbrante que faz de tudo. De diretor financeiro, de compras, de apoio ao cliente, e de promoção. Um homem que foi uma figura da noite lisboeta e que agora só sonha com o seu Vale do Gaio.

Teve uma infância agitada. Quais são as imagens mais marcante que tem desse período?

É meio complicado, mas há coisas que não consigo tirar da cabeça. Por exemplo, faltar às aulas. Para poupar dez tostões saía na paragem antes, sendo que a duração da aula passava-a no talho e dava-me um gozo enorme olhar para um talhante a desmanchar uma vaca ou um porco. São imagens que tenho em relação àquilo que gosto de fazer hoje em dia. Também tenho de família. Somos seis irmãos, pai e mãe, com uns primos que viviam ao lado e os meus avós em frente.

Isso onde?

Em Linda-a-Pastora. Um bocadinho longe de tudo. Apanhávamos o autocarro da Eduardo Jorge, ou para a Cruz Quebrada quando queríamos ir para Cascais, ou para o Marquês de Pombal. O circuito que ele fazia era Cruz Quebrada-Marquês, de maneira que nós ou íamos para a Cruz Quebrada e apanhávamos o comboio e íamos para a Linha, alturas do 2001 [discoteca] ou no sentido inverso quando queríamos ir para Lisboa.

Como ia para o 2001? Havia umas histórias engraçadas.

Ia à boleia. Ia até à autoestrada e invariavelmente quem me dava boleia era o capitão, que era um personagem emblemático que levava sempre a tia e a mãe que iam para o Casino do Estoril, duas velhotas viciadíssimas em jogo. Ele deixava-as no Casino, ia para o 2001 e depois ia buscá-las às 3 da manhã. Voltava para o 2001 até às 4 da manhã e elas ficavam no carro à espera. Sempre num VW carocha azul bebé e eu ia com eles: elas as duas atrás e eu à frente com ele. Ele não era de grandes conversas, mas é certo que me dava boleia.

Que idade tinha na altura?

Tinha 15 anos, mas toda a gente pensava que tinha 18 ou 19. Costumo dizer que tenho 57 anos e o coração já viveu 75. E já na altura era um bocadinho isso. Era muito amigo do Tó Manel Almeida Araújo, que se chama Otávio Manuel de Almeida Araújo, dono do 2001, e ele adorava-me. E sempre que precisava de qualquer coisa ligava para mim. Por exemplo, quando era preciso pintar o 2001 ou tratar das luzes, que eram latas Cerelac, ele comprava-as no supermercado e depois pedia-me para lhe arranjar uns dez amigos para as transformar em focos de luz. Aos 15 anos tinha cartão do 2001, tinha cartão do Van Gogo, e era bem tratado. O Seixas que era o porteiro do 2001 tinha uma adoração por mim.

Fazia isso porque conseguia fugir de casa, segundo li?

(Risos) Na altura tinha uma relação assim um bocado complicada com o meu pai, porque ele não percebia onde é que eu ia parar, de maneira que vivi grande parte da minha vida de castigo. Nasci para me dar com pessoas, para estar com pessoas, para fazer aquilo que faço hoje em dia que é receber pessoas e tornar momentos especiais, mas estava sempre de castigo porque bastava a professora dizer que estava desatento ou que não tinha tido uma nota positiva num exame. Cheguei à conclusão que a única forma de conseguir viver e dar azo à minha alma era fugindo de casa.

Tinha dinheiro para ir para o Van Gogo com 15 anos? Onde o arranjava?

Na altura era muito amigo do Paulo Simões, que era filho do dono da discoteca do Carmo. E a discoteca do Carmo era a única discoteca que existia em Lisboa que tinha discos importados da Deutsche Grammophon. Tudo aquilo que passava no 2001, e que não havia em lado nenhum, o único sítio onde se podia encontrar era na discoteca do Carmo. De maneira que com 15 anos – também o Paulo Simões pensava que já tinha 18 ou 19 – fazia algumas viagens a Andorra com ele para ir buscar os discos. Ele trazia tudo legalmente. Na altura apareceu um novo modelo de amplificador da Pioneer e a Portugal só chegava quatro anos depois. Apareciam umas colunas JBL e aqui só chegavam seis anos depois. Então comecei a ir com ele a trazer algumas coisas onde ganhava, na altura, cinco contos por cada peça. E cinco contos eram o suficiente para poder ter uma vida simpática, poder ir jantar ou almoçar ao Porto de Santa Maria – que não era o que é hoje em dia, mas já era um luxo.

Depois chumbou um ano quando ia supostamente entrar para a universidade.

Chumbei dois. O primeiro na altura do 25 de Abril, tinha 12 anos e consegui chumbar por faltas. Na altura os professores não marcavam faltas, mas resolveram marcar-me faltas. Fui então trabalhar para o escritório do meu pai e era um moço de recados, a ir entregar papéis ao notário e ao tribunal. Passei os três meses de férias a trabalhar assim como meu pai.

E a segunda vez, o que decide o seu pai fazer?

O meu pai dizia que era impossível, que não havia segunda hipótese e eu quando cheguei e vi que estava reprovado achei que o melhor era não voltar a casa, porque já sabia que os tempos não iam ser fáceis. Nunca na vida me identifiquei com Direito, e o meu pai fazia questão que tirasse Direito. Saí de casa e fui viver para casa de um grande amigo meu que falou com a mãe, e a mãe fez questão que eu fosse lá para casa viver e disse que me receberia como um filho. Até semanada me dava, e ela vivia com dificuldades. As aulas começavam no início de outubro e a minha mãe faz anos no dia 9 de setembro, e eu fiz questão de lhe ligar a dar um beijinho de parabéns de uma cabina telefónica. E depois falei com os meus pais e nesse telefonema eles disseram que a minha atitude não fazia sentido e que faziam questão de terem uma conversa comigo. E eu volto a casa para ter essa conversa e nunca mais saí. O meu pai deu-me duas hipóteses: ou seguia hotelaria, que era o sonho da minha vida, ou fazia aquilo que o meu pai entendia que deveria fazer, que era seguir Direito, porque a minha família tinha tudo para ser uma família de advogados e ter um escritório.

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