Como os maiores hospitais estão a preparar o inverno

Garantir resposta aos casos não-covid depois de meses de suspensão é uma das preocupações do S. João e do Santa Maria, mas também os casos sociais que ocupam as enfermarias. “Os doentes não aguentarão um novo adiamento de meses nos seus problemas de saúde”, alerta Fernando Araújo, presidente do S. João

O plano de contingência para o inverno não pode ser igual ao dos últimos anos e, no meio da incerteza do que poderá acontecer quando chegar a época em que normalmente aumentam as infeções respiratórias, há uma ajuda: a experiência dos invernos passados e o que se viveu com a primeira vaga de covid-19. Os maiores hospitais do Porto e Lisboa têm estado a preparar, com essa premissa, os seus planos para o Inverno. Ao SOL, o presidente do conselho de administração Fernando Araújo, resume: «Estamos a preparar-nos para o pior, esperando o melhor. Ou seja, estamos a preparar-nos para que no meio de uma exigente época de Inverno, possamos ter uma nova vaga de COVID-19, esperando naturalmente que não suceda». O diretor clínico do Hospital de Santa Maria, Luís Pinheiro, acredita que a organização será a chave, como foi nos últimos meses.

Escalar resposta: um inverno sem macas nos corredores

Fernando Araújo, que liderou a resposta do hospital quando os casos começaram a disparar em março, explica que a estratégia passa por desenhar os cenários mais complexos, de forma a poder ter capacidade de intervenção e ir ativando diferentes níveis do plano de contingência, «tentando, uma vez mais, adiantarmo-nos à dinâmica da epidemia». Está a ser feita uma revisão das estratégias seguidas, para serem integradas num plano consolidado, na vertente clínica, logística, de gestão e comunicação.

Além disso, está a ser implementado um plano de obras no serviço de urgência e nos cuidados intensivos, para lidar com o que poderá ser um aumento elevado da afluência de doentes respiratórios. Luís Pinheiro explica que no Santa Maria a estratégia também assenta na ideia de, a qualquer momento, saber como escalar a resposta. «Neste momento um plano exato com a ideia de quantos doentes teremos nenhum hospital pode ter, mas o termo-chave será a escalabilidade da resposta. Teremos de estar preparados para, internamente, conseguir adaptar as estruturas e crescer nas áreas em que for preciso dar uma resposta».

O inverno já é sempre exigente e se há 10 anos significava em média um aumento de 30% a 40% dos internamentos em relação aos meses de verão, nos últimos anos tem havido uma diminuição dessa sazonalidade, mas em Santa Maria é normal verificar-se um aumento de 20% das necessidades de internamentos por problemas do foro respiratório e descompensação de outras doenças. Luís Pinheiro explica que garantir em antemão a possibilidade de abrir outras áreas do hospital por forma a evitar a «lotação extraordinária enfermarias», as macas nos corredores a que todos os anos têm tido de recorrer, será uma das maiores preocupações e nesse sentido a ‘escalabilidade’ terá em conta não apenas as necessidades da covid-19 mas de outros casos que possam surgir. «Historicamente não internamos doentes na urgência, mas por vezes chegamos a ter mais 30% a 40% de doentes em enfermaria além da lotação base. Não é bom, mas é menos mau do que estarem na urgência. O que queremos que aconteça este ano é não termos de todo doentes além das lotações base, preparando deste já a mobilização de áreas. Não recusamos doentes, é coisa que nunca fizemos, mas temos de preparar a estrutura de internamento para, de forma incremental, se ir alargando e alocando espaço aos doentes agudos que precisem». Espaço existe, mas é uma estratégia que foi usada para antecipar a resposta à covid-19 e agora será replicada nas outras áreas do hospital. «A resposta da covid-19 já a temos delineada, nunca chegámos a ter de usar as 300 camas que sabíamos como poderiam ser ativadas. Agora temos de pensar nos espaços a alocar aos doentes agudos não covid».

Fazer tudo para não parar

António Costa defendeu esta semana a preparação imediata do inverno e a Direção Geral da Saúde adiantou esta sexta-feira que o plano global está a ser ultimado. Se o primeiro-ministro advertiu que o país não aguentará um novo confinamento, nos maiores hospitais a preocupação é evitar ter de parar a atividade progamada, consultas e cirurgias, como aconteceu nos últimos meses. «Neste plano, ao contrário da primeira vaga, pretendemos manter uma atividade eletiva relevante, seja na área cirúrgica, seja consultas externas – a importância da resposta em cuidados de saúde aos doentes não-COVID é crítica; os doentes não aguentarão um novo adiamento de meses nos seus problemas de saúde», diz Fernando Araújo. «Claramente, é algo que não queremos que aconteça», afirma também Luís Pinheiro. «O que vamos ter de fazer no outono e no inverno é assegurar uma resposta à permanência da covid-19, porque a perspetiva é cada vez mais que teremos de conviver com esta nova doença, associando isso à necessidade de continuarmos a assistência aos doentes covid-19, que foi mais prejudicada no início da epidemia, embora nunca se tenha interrompido», explica. «O nosso objetivo será dar a resposta ao doente covid-19 mas assumir a resposta aos doentes não covid-19, que são a maioria».

Definir alas diferenciadas no hospital é uma das estratégias, e implicará manter as atuais rotinas de testagem de todos os doentes admitidos para cirurgias e internamentos, aumentando essa capacidade. Tanto o S. João como o Santa Maria desenvolveram essa diferenciação ao nível da entrada nas urgências nos últimos meses, o que se manterá, assim como os procedimentos de testes para garantir segurança na resposta assistencial – e transmitir essa ideia de que o hospital é seguro aos doentes.

Quando os casos sociais ocupam uma enfermaria

Se os hospitais recebem os casos mais graves e complexos, o Inverno precisará de envolver, como sempre, os cuidados primários e a vertente social. Evitar o crónico congestionamento das urgências é outra das preocupações e os últimos meses, em que houve uma maior eficácia no maior encaminhamento das pulseiras e verdes para resposta nos centros de saúde, indicam o caminho. «As pessoas estão a ligar mais para o SNS24 antes de ir ao hospital. Numa situação ideal, as pessoas só deveriam vir a uma urgência hospital referenciadas. Não creio que poderemos fechar urgências, mas pode ser feito trabalho a esse nível», nota Luís Pinheiro.

Outra área em que defende que é preciso manter o trabalho conseguido nos últimos meses de resposta à covid-19 é na resposta aos doentes que têm alta hospitalar mas que continuam internados por estarem a aguardar vaga em unidade de cuidados continuados ou resposta residencial, por exemplo num lar, os chamados casos sociais. Aqui, o diretor clínico deixa um apelo: nos meses de inverno, em que habitualmente aumentam estes casos, será necessário uma resposta ágil, sobretudo aos hospitais com maior necessidade de responder a doentes. Num dia de inverno, Santa Maria chega a ter 50 a 60 doentes internados que já poderiam ter tido alta, o que equivale a todo um serviço, exemplifica. «Uma das coisas que permitiu aos hospitais terem dado uma resposta tão eficaz à covid-19 foi ter havido, da parte das estruturas extra-hospitalares, uma discriminação positiva dos hospitais mais envolvidos na resposta epidemia no encaminhamento destes doentes. Era importante conseguir manter uma filosofia idêntica».

As dificuldades das contratações

Contratar recursos humanos necessários é outro dos passos. A tutela já garantiu que isso será feito. No decorrer da pandemia, os hospitais passaram a ter autonomia para fazer contratos de quatro meses para reforçar equipas. A oferta nem sempre é aliciante. «A autonomia da gestão hospitalar foi fundamental para o sucesso da resposta à primeira vaga da epidemia, e seguramente será imprescindível nesta segunda fase», defende Fernando Araújo. Já Luís Pinheiro aponta como dificuldade a própria ‘escassez de mercado em áreas como enfermagem, onde mesmo com autorização para contratos sem termo não têm conseguido preencher os lugares abertos. A concorrência com o privado, admite, é uma das explicações. «Por vezes é uma ilusão», diz.

A força da organização

Do que fica dos últimos meses, e e que ajuda a pensar o que se seguirá, a organização, o esforço para diminuição da demora média dos internamentos, são aspetos que podem ajudar a enfrentar o que pode acontecer. «Neste momento conseguimos com as mesmas camas ter mais doentes internados. Estamos mais ágeis», diz Luís Pinheiro. «Temos mais conhecimento sobre o agente, mais experiência sobre a doença, mais equipamentos e maior formação dos profissionais», considera Fernando Araújo, que admite no entanto alguma apreensão com o desgaste dos profissionais de saúde e uma época em que além da COVID, existem muitas outras patologias e agentes infecciosos respiratórios, "que podem colocar em causa uma resposta robusta e sustentada." Com a crise da covid-19, foi como se o último inverno tivesse durado seis meses, disse há umas semanas ao SOL Roberto Roncon, intensivista do S. João. O próximo vai agora aproximando-se.