Macau, um Eco inesquecível

Tive o privilégio de, com Jorge Cavalheiro, mostrar a Umberco Eco a cidade de Macau.

Entre 1500 e 1800, o dragão amarelo dos Han e dos Tangs – essa Idade de Oiro de criatividade, riqueza e harmonia social como não haveria outra no mundo até à Revolução Industrial e à declaração dos direitos humanos no Ocidente – dormia na autossuficiência alcançada. Com os Ming, o comércio com o exterior paralisara totalmente. A China era "uma uma crisálida colossal" hibernada "no seu casulo de sedas".

Esse fechamento afetou em particular as regiões costeiras comerciantes do Sul, criando curiosamente as condições para a instalação dos portugueses.

E surgiu Macau, obra de comerciantes e jesuítas, experiência humana singular. Um convívio assente num interesse mútuo, que o desequilíbrio de forças e a índole dos dois povos permitiu. Uma experiência que duraria 500 anos – e prossegue, aliás, com os muitos portugueses que ali vivem gozando das regalias gerais. Um património arquitetónico urbano, humano e cultural em que a matriz portuguesa encontra a matriz chinesa, ali protegido e apreciado num respeito exemplar pela História. O português é uma das línguas oficiais, as ruas mantêm os nomes de sempre, os figuras que quisemos celebrar lá estão nas tabuletas que fixámos. Esta conceção da História está no âmago do pensamento chinês e no sentir espontâneo da gente com quem nos cruzamos nas ruas. Como não admirar tal civilização e não estimar tal povo? 
 

Foi essa cidade mítica que Umberto Eco quis conhecer no termo de uma jornada pela China, integrado numa iniciativa sino-europeia de ‘antropologia-recíproca’. Entendeu então o governador Rocha Vieira convidá-lo a passar uma semana no território, com a mulher e o diretor da Missão que entrara com eles pelas Portas do Cerco. 

Tive o privilégio de o acompanhar. Com Jorge Cavalheiro, um amigo há muitos anos ali radicado, mostrámos-lhe a cidade. Joia material e imaterial, diria depois Eco, que era "um dever de civilização preservar". Um desafio que o governo assumiu e as associações civis de defesa do património de Macau, significativamente os jovens, fazem seu. 

 
Estão agora a decorrer, por iniciativa do Instituto Cultural de Macau, as jornadas de divulgação do património histórico português, com visitas guiadas ao Leal Senado e à Fortaleza do Monte. Esta uma edificação dos jesuítas nos primórdios de Macau, em que todos os canhões estão voltados para o mar – pois da terra só viria ajuda… Enquanto em Macau se respeita a nossa História e os monumentos que deixámos, aqui, na nossa terra, querem-nos apagar a História, vandalizam e ameaçam as estátuas que erguemos. 

Na bela panorâmica da cidade vista da Fortaleza do Monte, sobressai a imponente fachada de granito e a escadaria monumental das ruínas de S. Paulo – um complexo do século XVI destruído por um incêndio em 1835. Fachada que é tudo o que resta da maior e mais bela das igrejas de Macau, registo único da arquitetura barroca na China.
Apontando a fachada fantasmática – só fachada! – ocorreu a Umberto Eco uma metáfora lapidar: "Um verdadeiro monumento pós-moderno!".