A política chegou às plantas

Pensávamos todos que a intromissão da ideologia na ciência tinha acabado há 400 anos, com Galileu. Não é assim!

Por António Manuel de Paula Saraiva
Arquiteto paisagista

Estando a acabar a revisão do meu livro As Árvores na Cidade, tive uma dúvida de ‘última hora’ sobre a exata classificação do salgueiro de ramos amarelos: era o Salix x sepulcralis var. chrysocoma, ou o Salix x salamonii var. chrysocoma? No site The Plant List, tido como ‘a referência’ dos nomes científicos das plantas, indicava-se que Salix x sepulcralis era um sinónimo e o nome aceite era Salix x salamonii.
Ora eu tinha visto há algum tempo, no site dos Jardins de Kew – os quais são os mais completos/conceituados a nível mundial – o nome de Salix x sepulcralis, indicando inclusive onde tinha aparecido; e assim quis voltar a esse site. Seria que teria lido apenas parte do texto, havendo algo que me escapasse? 
Qual não foi o meu espanto, porém, quando verifiquei não conseguir encontrar nenhuma ‘brecha’ para pesquisar as espécies pelo seu nome – o que anteriormente era muito fácil –, mas sim um grande artigo do diretor científico dos Jardins, Alexandre Antonelli, intitulado It’s time to decolonise botanical collections (É tempo de descolonizar as coleções de botânica).
Fiquei surpreendido e chocado. Então a política tinha aqui chegado? Note-se que a razão de ser dos jardins botânicos em geral, e do de Kew em particular (uma criação da época vitoriana, iniciado em 1840), é o de conservar nos seus países as plantas que os botânicos-exploradores foram encontrando nos vários continentes – de preferência vivas (por vezes em estufas, pois o clima assim o exige), mas, se tal não for viável, herborizadas.

Ora, Antonelli (um brasileiro), começando por contestar que o Brasil tivesse sido descoberto pelos portugueses em 1500 – pois, segundo ele, o país já era habitado por milhões de pessoas (o que é uma falsidade, pois não existia o ‘Brasil’ mas apenas centenas de tribos, com falas e costumes diversos, e guerreando-se entre si) –, continua negando também que as plantas tropicais tivessem sido ‘descobertas’, pois essas plantas já eram conhecidas e utilizadas pelos aborígenes há muito. 
Um discurso que seria admissível numa conversa ‘de café’, mas que não se pode aceitar da parte de um botânico. De facto, essas plantas foram ‘apresentadas ao mundo’ por botânicos intrépidos que viajaram por todo o globo em busca de novas espécies. E porque esses botânicos, provenientes de vários países europeus, dispunham – ou foram construindo – uma botânica sistemática e organizada, que definia rigorosamente os termos científicos que descrevem as plantas e as agrupava de acordo com as suas características (nomeadamente o tipo de flor). 
Tal método permitiu que fossem comparados os resultados e experiências dos diversos países e zonas do globo; e, assim, quando hoje falamos de uma planta na China, em Portugal ou na América, sabemos do que estamos a falar. E as tais descobertas, por muitas aspas que lhes queiram pôr, fizeram com que os conhecimentos sobre determinada planta passassem a ser, não apenas das poucas centenas dos membros da tribo, mas património de milhões de homens e mulheres

Continuando, Alexandre Antonelli enuncia como frutos dessa ‘nova política’ dos Jardins de Kew o ensaio de duas espécies alimentares (o inhame selvagem em Madagáscar e a falsa bananeira na Etiópia), e o mapeamento das espécies úteis na Colômbia; e a digitalização das suas coleções.
Ora, para tal não é preciso ‘descolonizar’. O ensaiar numa região de plantas provenientes de outras geografias foi o que as potências coloniais sempre fizeram através da história (em Portugal, desde o tempo dos romanos e dos árabes). Sobre esta troca de plantas, teve aliás lugar uma exposição muito interessante orientada pelo professor José Eduardo Ferrão, ‘A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses’, exposição da qual resultou um livro com o mesmo nome. 
E, se não tivesse havido essa troca, muitos povos e países não teriam hoje de que viver, ou só poderiam suportar pequenas populações. Por exemplo, para o Brasil. os portugueses levaram o café, a laranjeira, o inhame, canela, jaca, fruta-pão, vinha, arroz, manga, a bananeira… Para Angola, a mandioca, o arroz, o feijão, o ananás, o milho, a batata doce, a bananeira, o limoeiro… E, quanto à digitalização das coleções, tanto um governo comunista como fascista ou democrático a poderia fazer. 

Mas, alto! Antonelli não fica pela digitalização: os textos e descrições vão ser ‘revistos’. «And by examining and updating the western-centric labels we use to describe these items».
Antonelli continua dizendo que vai aumentar o número de funcionários de diversas etnias entre os funcionários dos seus Jardins. Eu pensaria, na minha ingenuidade, que para a admissão de pessoal os critérios seriam as qualificações e a experiência dos candidatos – e que, em igualdade de habilitações, não se fizesse distinção de cor. Mas parece não ser assim… 
E se este artigo começa com uma dúvida, acaba com uma certeza. Julgamos todos que as intrusões da ideologia na ciência acabaram com Galileu há 400 anos (e pelas quais, aliás, já o Papa João Paulo II pediu desculpa). E, portanto, que a botânica era ‘irrespective of politics’. Note-se que nem a revolução russa de 1917 nem a chinesa de 1949 haviam tocado neste ponto. Assim, o artigo de Antonelli, um membro influente da sociedade, revela uma alteração profunda de mentalidades. Para pior e não para melhor. Sob a aparência de ‘modernidade’, estamos perante um triste sinal de regressão.