Juan Carlos. Um Rei, dois exílios

O exílio do Rei emérito apanhou Espanha de surpresa. Enquanto se continua a especular sobre o paradeiro do de Juan Carlos, abre-se uma fenda na coligação do Governo e as vozes dividem-se: há quem classifique  a saída de fuga e quem recorde que a justiça tem um tempo e espaço. Nenhum deles fica na praça…

Majestade, querido Felipe: Com o mesmo desejo de servir a Espanha que inspirou o meu reinado e diante da repercussão pública que certos eventos passados na minha vida privada estão a gerar, desejo comunicar a minha disponibilidade absoluta de contribuir para facilitar o exercício das tuas funções […]. O meu legado e a minha própria dignidade como pessoa assim o exigem de mim». Assim se iniciava a missiva em que Juan Carlos, Rei emérito de Espanha, anunciava ao filho que iria deixar de residir no país. «Há um ano, expressei a minha vontade e desejo de parar de desenvolver atividades institucionais. Agora, guiado pela convicção de prestar o melhor serviço aos espanhóis, às suas instituições e a ti como rei, comunico-te a minha decisão ponderada de mudar, neste momento, para fora de Espanha», continuava.

O autoexílio foi apenas conhecido na segunda-feira mas, por essa altura, Juan Carlos já teria saído do país. O diário digital El Español garante que quando a notícia caiu o Rei emérito já teria saído de território espanhol há pelo menos 24 horas, uma versão entretanto desmentida por outros meios. A viagem foi planeada ao detalhe, com a equipa de Felipe VI a assegurar-se de que o desenlace decorreria longe dos holofotes. Há várias semanas que o Rei de Espanha tinha conhecimento do desejo do pai, começou por escrever parte da imprensa espanhola no início da semana, fazendo eco daquela que seria a versão da Casa Real. Mas à medida que os meios espanhóis foram ouvindo fontes a teoria depressa foi afinada, com os jornais a negarem que o autoexílio tenha sido uma decisão pessoal de Juan Carlos e que teria sido Felipe VI o verdadeiro maestro desta operação, sendo que a carta partiu igualmente do desejo do atual Rei espanhol. Todo o processo terá sido acompanhado de perto pelo Palácio da Moncloa. O El Espanol foi um dos jornais a afirmar que o líder do Executivo, Pedro Sanchéz, esteve a par das intenções de Felipe desde o início e acompanhou a preparação da viagem e subsequente comunicação ao país a par e passo.

A reforçar a tese de que Juan Carlos não terá tomado esta decisão nem de ânimo leve nem por vontade própria estão as confidências que o próprio terá feito às pessoas mais próximas. O La Vanguardia, por exemplo, escreveu que o Rei disse aos seus amigos mais íntimos que não ia de férias nem estava a a abandonar Espanha, e que a saída se tratava de um parênteses. 

Há ainda quem veja o dedo da rainha Letizia no sucedido. A jornalista Esther Jaén, amiga – ou ex-amiga – de Letizia foi convidada pelo programa televisivo Espejo Público para comentar a missiva de despedida do Rei emérito, e por lá afirmou que a carta parecia saída do punho de Letizia, além de revelar que Juan Carlos a assinou a contragosto. «Esta saída, na minha opinião… opinião, não. De acordo com informações que tenho, esta saída não foi do seu agrado, não foi planeado e muito menos voluntário por parte do Rei emérito… Custou-lhe muito ter de ‘meditar’», afirmou. Questionada se tinha sido difícil para Juan Carlos escrever aquela carta ao filho, Esther Jaén respondeu assim: «Que a assinasse, isso sim.. Ele não queria sair de Espanha, ainda por cima, com o argumento que continua a ter valor».
Se foi forçado à saída ou se decidiu por si próprio é ainda uma incógnita, mas certo é que as expressões exílio ou autoexílio são, neste momento, um tema tabu na família real. Uma questão que não é apenas de semântica mas que vem na linha do que tinha sido há muito anunciado: o afastamento progressivo do monarca que governou o país durante 39 anos.

Da Zarzuela a Sanxenxo
Em maio do ano passado, Juan Carlos anunciou a sua retirada da vida pública e deixou de ter agenda oficial, numa altura em que tinham passado cinco anos desde que abdicara do trono a favor do filho. Logo aí tinha enviado uma carta a Felipe, onde dizia ser sua «vontade e desejo» afastar-se dos holofotes, afirmando «ter chegado o momento de virar uma nova página» da sua vida. Na altura, Juan Carlos saiu da Zarzuela e começou a passar temporadas cada vez mais longas em Sanxexo, na Galiza, local, em que aliás, terá passado as suas últimas horas, escreveu o El País na quarta-feira, afirmando que o Rei emérito abandonou a localidade por volta das 7h30, tendo «pessoas que tiveram contacto com ele especulado que o destino poderia ser o aeroporto internacional do Porto, a 140 quilómetros de distância».

A partir daí, começou a especulação: República Dominicana, Estoril, Azeitão, Marrocos ou Suíça contam-se entre alguns dos locais apontados pela imprensa ao longo da semana.
Ninguém sabe o destino do antigo monarca espanhol – nem a sua mulher, a rainha Sofia, que por estes dias veraneia no palácio de Marivent de Palm, em Palma de Maiorca e que, afirmou o El Mundo na passada segunda-feira, continuará a viver na Zarzuela. 

Ninguém ou… quase ninguém. O El Español garante que há cinco pessoas a conhecer o real paradeiro de Juan Carlos: a dupla Felipe VI e Pedro Sanchéz; Félix Sanz Roldán, ex-líder do CNI (Centro Nacional de Inteligencia) e grande amigo do Rei emérito; o advogado do monarca Javier Sánchez Junco e, por fim, o chefe da Casa Real espanhola, Jaime Alfonsín. 

Em defesa do rei?
A especulação sobre o paradeiro do Rei fez correr muita tinta ao longo da semana um pouco por todo o mundo, mas à medida que se foi percebendo que o destino do antigo monarca está «atado e bem atado» – expressão utilizada em 1969 por Franco, ao anunciar que Juan Carlos seria o seu sucessor e agora replicada por uma fonte «muito próxima» do Rei emérito ouvida pelo El Español -, a análise do seu percurso começou a tomar a dianteira nas parangonas. O infame episódio da caçada de elefantes no Botswana, em 2012, tem sido apontado como o momento que marcou o início da queda do antigo monarca, sendo que a partir daí a popularidade de Juan Carlos caiu a pique. E continuou a descer à medida que os escândalos foram vendo a luz do dia. Conhecido por manter, há largas décadas, casos extraconjugais, uma das suas amantes, Corinna Larsen, tem tido um papel especial nesta derrocada. Foi ela quem denunciou, em gravações, os alegados esquemas do monarca com a Arábia Saudita, nas já famosas ‘cintas [fitas] de Corinna’, dizendo que tinha sido uma das testas de ferro – terá recebido 65 milhões de Juan Carlos – na operação. Mais tarde, chegou até a afirmar que o antigo monarca tinha uma máquina de contar dinheiro na Zarzuela.
Desde então Juan Carlos está a ser investigado por corrupção e branqueamento de capitais e correm atualmente dois processos: um em Espanha, outro na Suíça. 
As vozes no país vizinho dividem-se sobre a espécie de justiça popular que, para alguns setores, terá levado o Rei a sair do país por não poder defender-se como um cidadão comum. O antigo chefe de Governo Felipe González, o terceiro presidente do Governo desde a reinstauração da democracia na Espanha, de 1982 a 1996, foi um dos nomes que nas últimas semanas vieram pôr-se do lado de Juan Carlos, apelando à «presunção de inocência» e ao «respeito pelo legado histórico» do antigo Rei. Numa entrevista à Televisión Española, concedida há três semanas, o socialista pediu para não se aceitar como verdade «o que diz um polícia corrupto ou uma senhora tal», referindo-se a José Manuel Villarejo – o ex-comissário entretanto também acusado de corrupção que gravou as escutas – e a Corinna Larsen. 

Num artigo publicado na terça-feira no El País, assinado por Guillermo Altares, o jornal também recorda o papel «central» de Juan Carlos para a queda de Franco, afirmando que a atuação do Rei foi determinante na hora de derrubar «o edifício legislativo do franquismo». «Todos foram importantes, Torcuato Fernández-Miranda, Adolfo Suárez, Santiago Carrillo, Felipe González […]. Mas o Rei Juan Carlos foi especialmente importante porque tinha as fontes do poder. Podia ter abrandado, dificultado ou promovido a transição», tendo acabado por escolher este último caminho, disse ao diário espanhol o historiador Enrique Moradiellos.
Por cá, Paulo Sande (candidato da Aliança às europeias), também defendeu Juan Carlos, lembrando num post no Facebook «o papel decisivo de Juan Carlos na transição de Espanha para a democracia» e afirmando que «poucos grandes Homens e Mulheres, ao longo da História, sairiam impunes de uma análise séria e transparente das suas vidas pessoais». «Quer isto dizer que o Rei emérito deve ser desculpado de eventuais crimes cometidos durante ou após o seu reinado?

Não quer. À justiça democrática o que lhe compete, no tempo e no modo que são os seus. Mas que ninguém esqueça o que Juan Carlos I Bourbon fez por Espanha, muito provavelmente evitando um retrocesso na transição para a democracia e até um banho de sangue. Nota final: sou contra a monarquia», escreveu.
Também o ex-presidente da Câmara de Lisboa e ex-ministro da Cultura, João Soares, defendeu na mesma rede social que Portugal deveria receber Juan Carlos. «Perdeu-se, diz-se, pelo seu gosto por senhoras, e por eventuais prendas que terá recebido, e não deveria. Isso não é razão para que não pense que o deveríamos receber cá em Portugal. Onde ele e seu pai viveram exilados. Penso que seria um gesto digno de vizinhos e amigos de Espanha que somos nós portugueses», considerou João Soares.

No campo oposto, a Unidas Podemos, parceiros de Sanchéz no Governo, vieram classificar a saída do Rei emérito de «fuga» e consideraram a posição do PM espanhol «dececionante». O vice-primeiro-ministro Pablo Iglesias tem sido um dos mais críticos não só do antigo monarca como também da de posição de Pedro Sanchéz, e à esquerda multiplicam-se as vozes que pedem um referendo ao atual regime.
Está assim aberta uma fenda na já periclitante coligação que governa o país, com o pacto constitucional de 1978 e, por arrasto, o futuro da monarquia a serem as pedras de toque da discussão. A saída de Juan Carlos – que pretendia, em última instância, funcionar como um balde de água para apagar o fogo mediático – corre o risco de se tornar no rastilho definitivo quer para o processo judicial quer para o próprio sistema governativo espanhol.
Aos partidos de esquerda juntam-se os independentistas. Também Quim Torra – o presidente do Governo da Catalunha, que já tinha pedido no mês passado aos serviços jurídicos do executivo regional para fazerem uma queixa-crime contra o Rei emérito Juan Carlos e Corinna Larsen – veio esta semana pedir a abdicação de Filipe VI e ainda uma sessão plenária extraordinária, a realizar-se em 48 horas, para que fosse estabelecida uma «posição comum» sobre a «crise aberta da monarquia». Em Espanha, o verão vai prosseguir quente. Já Juan Carlos tem o destino traçado: o segundo exílio da sua vida.